“Aqui a morte fica feliz em ajudar a vida.” Esse é o lema em latim impresso em letras grandes na parede de uma das salas de anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É lá que ficam as estruturas anatômicas de pessoas que, ao partirem desta vida, decidiram doar seus corpos para ajudar na formação de futuros profissionais de saúde e também daqueles que, já formados, precisam aperfeiçoar técnicas cirúrgicas ou mesmo testar novos equipamentos e eletrodomésticos.
Tudo com um único objetivo: salvar a vida das pessoas com a ajuda essencial de quem já passou por isso. Pioneira no Brasil na coleta de corpos para estudo, a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais mantém o programa “Vida após Vida”, que este ano comemora 25 anos de existência e é considerado referência no Brasil e no mundo.
O projeto possibilita a busca de corpos a até mil quilômetros de distância da capital mineira, sendo responsável por todo o repasse, inclusive despesas, desde que haja consentimento durante a vida do doador e se, após o falecimento, houver nenhuma objeção de qualquer parente direto como cônjuge, irmãos e filhos. A família também pode optar pela doação, desde que não haja declaração em contrário do doador durante sua vida.
O programa é o primeiro do país e também é modelo não só na captura de corpos, mas também no seu manejo e conservação. A universidade está em fase de finalização da patente de um produto que permite a conservação de estruturas com pouca rigidez, o que facilita os estudos de anatomia, essenciais para o avanço da medicina e a formação dos profissionais de saúde.
O “Vida Depois da Vida” já conta com cerca de 2 mil doadores em seu cadastro e atualmente recebe em média 30 corpos por ano. A maioria das mulheres e pessoas com mais de 60 anos. É coordenado pelo anatomista Kennedy Martinez, apaixonado pela profissão que exerce há 22 anos e também doador.
“A doação é muito importante. Na verdade, é fundamental entendermos o corpo humano e podermos atuar no combate a doenças, realizar cirurgias, pesquisar e salvar vidas”, afirma Martinez, que define a doação como um ato de solidariedade.
O primeiro passo para doar, diz Martinez, é uma entrevista cara a cara e detalhada com o doador. Ele explica todos os trâmites burocráticos necessários e também detalha como será o tratamento do órgão.
“Tratamos tudo com muita clareza e respeito, não só em relação ao doador, mas também à família”. Segundo ele, caso algum parente próximo se oponha, a doação pode ser cancelada sem problemas. “Se a família ou apenas uma pessoa da família se sentir incomodada, basta que a doação seja revertida”, garante. Essa possibilidade de reversão está prevista, segundo ele, na legislação que rege a doação.
Qualquer pessoa pode ser doadora, desde que tenha mais de 18 anos. Os corpos de vítimas de doenças como a doença da vaca louca e o vírus Ébola, altamente contagiosos, e vítimas de crimes, não são aceites. A família também pode doar o corpo de parente que não assinou o termo em vida, desde que não tenha havido declaração em contrário.
O programa mantém uma equipe de prontidão 24 horas por dia para realizar transferências e remoções. Assim que o corpo chega ao colégio, inicialmente permanece em câmara fria até a emissão da certidão de óbito. Em seguida, é descaracterizado e imerso em formaldeído ou solução similar, onde permanece por cerca de 9 meses antes de ser dissecado e utilizado para estudo.
Alguns são simplesmente resfriados e conservados com um produto especial. São utilizados para procedimentos semelhantes a cirurgias, principalmente os mais delicados, como transplantes e procedimentos neurológicos.
Martinez explica que não há possibilidade de o corpo ser reconhecido durante o manuseio ou estudo, medo de muitas famílias. “É impossível alguém identificar um cadáver em estudo. Mesmo que alguém tenha convivido com a pessoa, isso não é uma possibilidade, pois são retiradas a pele e a gordura subcutânea, o que impede a identificação de marcas como tatuagens, por exemplo”, garante Martinez. Além disso, segundo ele, os corpos são todos da mesma cor, independente da raça.
Jornalista e publicitária Neide Pessoa com representante do “Vida Depois da Vida”: segundo ela, o processo de doação foi “rápido, simples e muito elegante”
Alexandre Guzanshe/EM/DA Press
“Meu corpo será útil aqui na terra”
Para a jornalista e publicitária Neide Pessoa, de 87 anos, o “corpo é apenas a casca da alma e do espírito”. “Por isso não me senti confortável em ser enterrada ou cremada”, diz ela, e decidiu doar seu corpo para ser estudado por alunos da Faculdade de Medicina da UFMG. Realizado recentemente, o processo de doação foi integralmente realizado pelo programa “Vida após Vida” da instituição e, como ela define, foi “rápido, simples e muito elegante”.
“Quando faço esse gesto me sinto muito bem, porque sei que depois da minha vida, que é alma e espírito e será no espaço, meu corpo será útil aqui na terra. Espero que os alunos possam ter um bom aprendizado”, afirma o aposentado. Ela diz que ficou feliz com a conclusão do procedimento. “A morte para mim é a vida que continua e continuarei doando meu corpo”, afirma.
Neide conta que tomou conhecimento do programa após a morte de um amigo, o colega jornalista Sebastião Martins, que faleceu aos 77 anos, em 2018, após um câncer agressivo. “Quando soube, me preparei para ir ao velório, mas fui informado que não haveria, pois, atendendo à vontade dele, seu corpo foi doado à Faculdade de Medicina da UFMG”, relata. Poucos dias depois, a família reuniu amigos e parentes para homenagear Sebastião.
Desde então, diz Neide, um desejo semelhante lateja em sua cabeça. Com a ajuda de um amigo, Manoel Guimarães, Neide, que mora sozinha no Bairro Cachoeirinha, viabilizou o processo, realizado na própria casa, pois tem problemas de mobilidade e não sai de casa há muito tempo.
Bolo, café e prosa
O “evento” contou com bolo, pão de queijo, café e, segundo ela, uma “prosa longa”, em que todos os procedimentos foram explicados pelo médico Kennedy Martinez, coordenador do projeto, e pela secretária de “Vida após a vida”. , José Henrique Moreira.
“Agora, me tornei divulgador de algo muito elegante, que é o processo de doação realizado através da Faculdade de Medicina da UFMG, com o objetivo de que as pessoas tomem consciência, analisem e possam decidir com tranquilidade a possibilidade de vida após a morte”.
Programa é pioneiro
O “Vida Depois da Vida”, primeiro programa do gênero no Brasil, surgiu em 1999, a partir do desejo manifestado por uma mulher, portadora de uma doença grave e terminal, de doar seu corpo com a finalidade de formar novos médicos. Uma sobrinha do doador chegou à Faculdade de Medicina sem saber como proceder para concretizar o desejo da tia.
Na época, a escola estudava anatomia com corpos não reclamados e doados seguindo os critérios da legislação. Sem saber como proceder, a direção da faculdade descobriu, por meio de informações fornecidas pela mulher que queria ser doadora, que 10 anos antes o Conselho Universitário da UFMG havia autorizado o recebimento de corpo em situação semelhante.
A informação foi confirmada em pesquisa documental realizada pela diretoria da faculdade e na doação, autorizada pela Procuradoria da UFMG. Poucos dias depois, a mulher faleceu e seu corpo ajudou dezenas de estudantes a aprender anatomia. A partir daí, o programa se estruturou, tornou-se referência no país e hoje conta com cerca de 2 mil pessoas cadastradas como voluntárias.
Segundo o secretário do programa, José Henrique Moreira, o número pode parecer alto, mas não é, pois não há previsão de quando será feita a doação. E não existe, reforça o médico anatomista que coordena o programa, Kennedy Martinez, nenhum boneco ou tecnologia que substitua a aprendizagem num corpo humano real.
Quem pode doar?
Pessoas maiores de 18 anos podem autorizar a doação de seu corpo para estudos durante a vida. Os corpos de pessoas que foram assassinadas ou que cometeram suicídio, bem como de pessoas que sofrem de doenças como a doença das vacas loucas e o Ébola, não são aceites. As vítimas da COVID-19 podem doar. A família também pode autorizar a doação desde que a pessoa não tenha manifestado qualquer objeção durante a vida.
Como doar?
Você deve procurar o programa “Vida após Vida” para concluir o trâmite burocrático e assinar o formulário de doação. Antes disso, o programa realiza uma entrevista pessoal onde todos os procedimentos são detalhados.
E se a família não concordar com a doação ou mudar de ideia após o falecimento do doador?
Caso haja alguma objeção do cônjuge, filho ou irmão, a família poderá cancelar a doação sem nenhum problema.
A doação tem algum custo?
Nenhum. Todo transporte e preparo do corpo são custeados pela UFMG. Os corpos podem ser revistados num raio de até mil quilômetros da capital mineira.
O corpo pode ser reconhecido por alguém durante o tempo em que é utilizado para estudo?
Não há chance de isso ocorrer, pois o procedimento de conservação e manuseio distorce completamente o corpo.
Se a família quiser fazer o luto pelo corpo antes de doá-lo, é possível?
É possível, mas por um período de tempo menor do que normalmente acontece nos velórios. Neste caso, a faculdade não cobre as despesas do funeral. Terminada a comemoração, o corpo é removido pela UFMG.
Quanto tempo dura um corpo para estudo e o que é feito após esse período?
Em média, os corpos duram entre 9 e 12 anos. Após esse período, são sepultados ou cremados pela própria UFMG. Ela mantém um túmulo com lápide em homenagem aos doadores no Cemitério da Saudade, em Belo Horizonte, onde estão sepultados os corpos, para que a família possa prestar homenagem.
Informações sobre doações
(31) 3409-9739 ou pelo e-mail vidaaposavidaufmg@gmail.com
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