O descarte irregular de resíduos pode desencadear problemas ambientais e causar danos à saúde da população que vive em locais onde não há coleta seletiva. Lixões, aterros controlados, valas, vertedouros e áreas similares são alguns exemplos de locais onde não há tratamento adequado para os resíduos descartados na natureza.
De acordo com o novo Marco Legal do Saneamento Básico, promulgado em 2020, todas essas localidades deveriam ser desativadas até o dia 2 de agosto, mas o cenário ainda é bem diferente. Segundo o último relatório realizado pela Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), 27,9 milhões de toneladas de resíduos sólidos são descartados irregularmente no Brasil, o que corresponde a cerca de 39% de todos os resíduos gerados no país. . Os dados constam do estudo Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2023. O documento mostra que existem cerca de 3 mil aterros ativos ou controlados no país.
Na opinião de especialistas consultados pelo Correio, faltam os incentivos necessários para promover o descarte adequado e aumentar a reciclagem no país. A alta carga tributária e a falta de apoio aos catadores são os temas mais recorrentes na visão de analistas, que acreditam que o Brasil precisa percorrer um longo caminho para cumprir as metas estabelecidas no Marco de Saneamento e no Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), de 2022.
“Os aterros ainda precisam ser fechados. O Brasil deverá estar livre de todos os aterros existentes até agosto de 2024, mas essa meta não será cumprida. Ainda convivemos com mais de 3 mil lixões a céu aberto sem qualquer tratamento ambiental ou econômico”, observa o presidente da Abrema, Pedro Maranhão, que acredita que, com a substituição dos aterros sanitários por lixões, surgem diversas oportunidades de negócios no reaproveitamento de resíduos.
Tributação
Ele acrescenta que a questão tributária é outro problema sério. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a isenção de impostos sobre a venda de materiais reciclados, o que, para o presidente da associação, torna os produtos reciclados mais caros do que os similares, recém-fabricados. “Defendemos a isenção tributária e a autorização para que a indústria possa usufruir de créditos tributários na compra de material reciclado. Somente com medidas como essas poderemos esperar atingir as metas estabelecidas no Planares”, avalia. A decisão do Supremo Tribunal foi objeto de recurso e a decisão final ainda não foi tomada.
No Brasil, foram geradas mais de 77 mil toneladas de resíduos sólidos nas cidades em 2022, o que corresponde a uma média de 380 kg por habitante. O Sudeste é, de longe, a região com maior quantidade de resíduos descartados no país, sendo responsável por praticamente metade de todos os resíduos gerados nacionalmente. Em seguida, estão listados Nordeste (24,6%), Sul (11%), Centro-Oeste (7,7%) e Norte (7,3%).
Desigualdades
Apesar da quantidade significativa de resíduos, a pesquisa indica que apenas 14,7% da população brasileira é atendida pela coleta seletiva em domicílio. Esta realidade torna-se ainda mais desigual quando a análise é feita por regiões. Enquanto no Sul e no Sudeste a arrecadação atinge, respectivamente, 31,9% e 20,3% dos cidadãos, no Norte e no Nordeste essa taxa não passa de 2%.
“O país tem suas desigualdades regionais, isso fica muito claro quando olhamos os dados, tanto de saneamento básico, água e esgoto, quanto da questão do lixo”, ressalta o especialista em saneamento básico, Leandro Frota. “Existem vários ‘Brasis’ dentro do Brasil. Está avançando, mas ainda há muito o que fazer e ainda acho que estamos atrás, mas com esperança e progresso”, completa.
Além das disparidades regionais, o especialista afirma que há outro problema que não é mensurado: a coleta de lixo no meio rural. Na avaliação de Frota, isso pode ser considerado um problema crônico no país. “Esse distanciamento dos centros urbanos acaba sendo muito ruim, primeiro porque a maioria das cidades não tem estrutura pessoal e orçamentária. aquela crítica pública que você entende como estratégica, ou não”, sustenta.
Reciclando
Com o aumento do descarte irregular, um dos maiores desafios do Brasil é conseguir expandir a reciclagem de resíduos sólidos. O último Índice Nacional de Valorização de Resíduos (IRR), de 2021, mostra que apenas 1,67% dos resíduos sólidos foram reaproveitados, reciclados ou utilizados para energia. Além disso, as projeções mais otimistas indicam que esta variável poderá atingir até 4%.
Mesmo no melhor cenário, o Brasil está longe de atingir a meta estabelecida pelo Planares, que estabelece uma TIR de 48,1% em 2040. Para o consultor de Sustentabilidade da BMJ Consultores Associados, Felipe Ramaldes, gargalos sociais e econômicos impostos pela realidade continental do país são alguns dos obstáculos para o aumento desse índice.
“A questão da reciclagem é um desafio ainda a ser enfrentado no Brasil. Embora alguns materiais, como o alumínio e até o papel, por exemplo, tenham bons índices de reciclagem, outros como o plástico, o vidro e os metais enfrentam grandes gargalos que vão pela falta desde a destinação adequada dos resíduos até a baixa reciclabilidade de alguns produtos”, comenta.
Além disso, o especialista avalia que, do ponto de vista económico, os gastos do país com limpeza urbana são muito elevados. Dados da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) mostram que os gastos com limpeza urbana — desde a varredura de ruas até a coleta e transporte — estão entre os cinco maiores gastos dos municípios do país.
Segundo a associação, as prefeituras gastam, em média, R$ 124,44 por cidadão, por ano, com limpeza urbana. “O reaproveitamento de materiais por meio da reciclagem apresenta um potencial interessante para o país ao favorecer a religação da matéria-prima com a cadeia produtiva e ao contribuir para a redução da exploração agressiva de matéria-prima virgem, algo que desgasta cada vez mais o meio ambiente”, analisa Ramaldes.
Parceria entre SLU e catadores reduz prejuízos
Os serviços de limpeza urbana (SLU) foram criados no Brasil no século XIX, com o objetivo de garantir a remoção dos acúmulos de lixo que eram gerados nos principais centros urbanos do país. Presente no Distrito Federal desde 1961, o SLUDF aumentou suas despesas com limpeza de R$ 28,2 milhões para R$ 42,5 milhões anuais, entre 2021 e 2022.
No ano passado, foram recolhidas pelos serviços 53 mil toneladas de resíduos reciclados. Todo esse material foi encaminhado para organizações de catadores. Atualmente, o SLU está presente em 94% da região geográfica do DF, sendo excluído apenas de Sol Nascente/Pôr do Sol e Água Quente — a mais nova região administrativa do DF, fundada em 2022.
No DF, o serviço é um dos poucos a firmar contratos com catadores para coleta seletiva e triagem de resíduos em aterros. Hoje, essas parcerias são estabelecidas com cooperativas e associações de catadores da região. Segundo o responsável pela Unidade de Sustentabilidade e Mobilização Social do SLUDF, Francisco Mendes, o serviço tem actualmente 42 contratos com estes grupos.
“Assinamos o primeiro contrato com quatro cooperativas, abrangendo 5 RAs, em 2016. Em 2017, iniciamos as contratações para o serviço de triagem, até então já vínhamos encaminhando toda coleta seletiva das empresas para organizações de catadores. Então em 2017 começamos a expandir, 2018, 2019, e hoje temos 42 contratos”, explica Mendes.
A previsão orçamentária atual do SLU é de R$ 18 milhões. Apesar disso, o responsável pela sustentabilidade explica que esse número chega a no máximo R$ 3 milhões. Isso porque a sistemática adotada pelo município nos contratos com catadores estabelece o pagamento pela produção, e não por um valor fixo.
Sobre a situação atual da coleta seletiva no DF, Francisco Mendes afirma que isso envolve uma série de desafios que não são tão simples de serem resolvidos. “Por exemplo, em Águas Claras há 20% ou 30% da população que separa (lixo) legalmente. Mas tudo isso vai para os mesmos recipientes. Então aquele lixo que está bem separado será contaminado pelo que não está”, explica.
Incentivos
Na visão do responsável pela sustentabilidade da SLU, há um grande desafio para aumentar a reciclagem no Brasil, o que envolve a cultura da população. Embora não seja uma realidade que possa ser mudada da noite para o dia, ele afirma que já existem melhorias e que poderiam ser potencializadas com incentivos da indústria para a logística reversa.
“Acho que isso envolve o custo. Se a logística reversa fosse mais eficiente em nosso país, teríamos um resultado muito mais rápido e abrangente. Porque o papel da logística reversa é assumir o custo de colocar as embalagens no mercado e recolher essas embalagens de volta, assumindo todo esse custo. Faz parte do produto dela”, afirma.
A logística reversa é uma espécie de ciclo. Nesse sistema, a indústria pode fabricar um produto com o intuito de facilitar o retorno da embalagem à etapa inicial, na qual são realizadas coletas e seleções para verificar se o produto pode ou não ser revendido no mercado. É considerado um potenciador da reciclagem.
Na opinião do presidente da Associação Nacional dos Cortadores de Papel (Anap), Marcelo Bellacosa, e de seu vice-presidente, João Paulo Sanfins, também faltam incentivos do governo federal para tornar a logística reversa mais atrativa para o setor industrial . Em dezembro do ano passado, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu que iria apresentar uma lei para tornar obrigatória a logística reversa. Apesar disso, o setor reclama que não houve nenhum movimento nesse sentido.
“Isso é muito crítico, porque faz com que a indústria tome medidas como tomou. Ações que façam com que deixe de usar conteúdo reciclado, use apenas fibra virgem ou compre resíduos de outros países, como aconteceu durante a pandemia”, afirma João Paulo. O setor de sucata é um dos que mais sofreu desvalorização desde o início da pandemia. Segundo os padrinhos, essa desvalorização chega a mais de 75%.
“Então o cara vai parar de fazer isso e vai fazer outra coisa. Aí, quando o preço subir novamente, ele já está fazendo outra coisa e não vai voltar atrás, a menos que você o convença a voltar a usar material reciclado. Então é nessa montanha-russa que sobe e desce rapidamente e não tem regras”, lamenta o presidente da Apas, Marcelo Bellacosa.
Apesar da falta de incentivos do governo, o especialista em saneamento básico, Leandro Frota, avalia que não deve haver mudança no médio ou longo prazo sem a conscientização da população sobre o descarte seletivo.
“É claro que eles (governo) têm uma obrigação constitucional, pela qual todos que foram eleitos. Mas a população tem a obrigação de cuidar dos seus resíduos”, reforça.
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