Protegida, por enquanto, das pressões para a exploração comercial dos seus recursos naturais, a Antártida permaneceu, ao longo dos últimos 50 anos, uma espécie de santuário para a Humanidade. Devido ao tratado que uniu, na década de 1970, quase 30 países em torno de regras de ocupação acordadas nas quais a investigação científica é a prioridade, o Continente Antártico é um raro exemplo de gestão colaborativa num mundo em alerta, assombrado pelas alterações climáticas. , a escassez de alimentos e a crise do multilateralismo.
O Brasil, ao manter presença ininterrupta no continente há mais de quatro décadas, consolida seu papel de liderança nas discussões sobre o futuro da região e reforça a posição nacional na geopolítica global. Além de guardar segredos que podem ajudar a ciência a compreender os processos das mudanças climáticas — e seus efeitos aqui no Brasil — a Antártida também é um poderoso instrumento de “soft power” para a diplomacia brasileira.
Nestes quarenta anos, como demonstra o Correspondência Na edição de ontem, centenas de projetos científicos utilizaram a estrutura brasileira da Estação Comandante Ferraz, na Ilha Rei George, no extremo da Península Antártica, como base de apoio para trabalhos de campo. Selecionados por meio de chamada pública do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), os projetos contam com a colaboração das Forças Armadas, especialmente da Marinha, que, além de cuidar da manutenção da estação, é responsável por a logística de transporte de pessoas, equipamentos e insumos. Os aviões da Força Aérea também ajudam a transportar instrumentos, suprimentos, remédios e peças de reposição, que são lançados de paraquedas.
Este ano, porém, a Marinha está sendo obrigada a improvisar, devido à escassez de recursos para manter o Programa Antártico. O orçamento caiu de R$ 9 milhões em 2023 para apenas R$ 3 milhões este ano, já incluindo emendas parlamentares da frente parlamentar que apoia as pesquisas brasileiras no Pólo Sul.
Apesar das restrições orçamentárias, a próxima Operação Antártica (Operantar), de número 43, receberá cientistas de 29 projetos de pesquisa, seis a mais que a edição anterior, encerrada em abril deste ano. No Operantar 42, 137 pesquisadores de 18 instituições e universidades utilizaram a Estação Comandante Ferraz. Foram desenvolvidos 23 projetos de pesquisa em áreas como biodiversidade, clima, geologia, geofísica, oceanografia, saúde e ciências humanas e sociais, todos focados nas conexões entre a região Antártica, o Oceano Atlântico e a América do Sul.
O Brasil está na vanguarda das pesquisas antárticas e acumula conhecimento que é compartilhado com toda a comunidade científica global. Os estudos também informam as decisões da comunidade do Tratado da Antártica, num ambiente colaborativo que difere das atuais tensas relações geopolíticas. Em virtude do acordo internacional, a liberdade de investigação é garantida, com resultados partilhados publicamente.
As instalações brasileiras também podem ser utilizadas por pesquisadores estrangeiros, assim como o país utiliza, sem restrições, equipamentos de outros países. A própria presença militar na região é garantida pelo tratado, desde que vise exclusivamente fins pacíficos. Atualmente, 35 países (incluindo o Brasil) mantêm estações de pesquisa na Antártica, incluindo Estados Unidos, China e Rússia.
Oásis de biodiversidade
Para os especialistas, a Antártida é a resposta a muitas das questões que rodeiam a emergência climática. O continente também sofre os impactos do aquecimento global, com consequências diretas para o planeta. No inverno do ano passado, por exemplo, foi registrada a menor extensão da camada de gelo marinho de toda a série histórica.
O oceanólogo e pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande (FURS), Eduardo Secchi, lembra que esse intenso derretimento ocorreu no ano em que o planeta também registrou sua maior temperatura média. Ele coordena pesquisas que estudam a resiliência dos ecossistemas marinhos diante do aquecimento das águas do Oceano Antártico. Um dos objetivos é identificar as áreas mais importantes para a biodiversidade, os chamados oásis (ou hotspots), que poderiam ser declaradas como áreas de importância biológica e ecológica.
“Obviamente haverá maior absorção de calor na Antártica, com efeitos que perdurarão pelos anos seguintes. (Aquecimento global) provoca menos gelo, o que leva a uma menor absorção de calor e a mares cada vez mais quentes. Talvez já tenhamos chegado ao ponto em que o gelo entra num processo contínuo de derretimento. Isso tem um efeito catastrófico num futuro não muito distante, como estamos vendo com as enchentes aqui (no Rio Grande do Sul). Essa interação antártica e trópica existe, a conexão se reflete, por exemplo, na nossa agricultura, no dia a dia de todos os brasileiros”, explicou o cientista.
Krill ameaçado de extinção
A Antártida é um continente cobiçado internacionalmente devido à sua riqueza mineral, incluindo petróleo, e aos abundantes recursos marinhos. Devido ao tratado internacional que regulamenta a presença humana no continente, a mineração para fins comerciais é proibida. Há também pressão da indústria pesqueira para capturar krill, um minúsculo crustáceo abundante em mares congelados, que está na base de toda a cadeia alimentar do ecossistema marinho. Muitas espécies de baleias, peixes e aves dependem do krill para sobreviver.
Devido à sua alta concentração proteica, o krill é visto como uma alternativa para enfrentar um possível período de escassez alimentar decorrente das mudanças climáticas, que afetam a produção de alimentos em todo o mundo. Mas, para os investigadores, a exploração do crustáceo é uma grande ameaça ao equilíbrio ecológico dos oceanos.
A pesquisa coordenada por Eduardo Secchi estuda com precisão os impactos do aquecimento solar nesses ecossistemas. Essas informações também são importantes para orientar ações coordenadas de preservação desses recursos. “Podemos sugerir aos países do Tratado Antártico que promovam políticas públicas para alterar alguns procedimentos”, explica Secchi.
A pesca do krill é gerida pela Comissão para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos da Antártica (CCAMLR), que faz parte do tratado continental. Por ser um componente vital da cadeia biológica, qualquer desequilíbrio na oferta de krill impacta diretamente a fauna marinha. “Existe uma procura de vários países para a captura de krill pela sua capacidade nutricional. Contudo, já observamos que, em anos pobres em krill — associados a períodos em que a extensão do mar congelado era menor — a taxa de natalidade de filhotes de baleia franca no litoral de Santa Catarina e de baleias jubarte no Pacífico Sul foi mais baixo. abaixo do registrado em anos de abundância”, explica o pesquisador.
Condições severas desafiam o pessoal militar
Para os militares, a presença na Antártica também é um grande laboratório de desenvolvimento e aprendizagem tecnológica. A Marinha, por exemplo, produz trabalhos de cartografia, meteorologia e navegação nos mares congelados que dão suporte a navegadores de todo o mundo. Também desenvolve tecnologias para serem aplicadas no ambiente antártico. As equipes de meteorologia, por exemplo, são responsáveis por identificar as chamadas “janelas meteorológicas”, quando as condições atmosféricas permitem travessias e voos mais seguros.
Além de administrar a estação Comandante Ferraz, a Marinha também disponibiliza dois navios de pesquisa — o Navio Polar Comandante Maximiano e o Navio de Apoio Oceanográfico Ary Rongel — e dois helicópteros, além de embarcações menores e equipamentos pesados, como tratores e guindastes. A Força Aérea participa com o avião cargueiro KC 390, fabricado pela Embraer, responsável pelo lançamento de paraquedas no abastecimento da estação polar.
Este ano, o Comandante Maximiano (NPCM) está sob a liderança do capitão de mar e de guerra Carlos Eduardo Navásio, que está na Marinha há 30 anos. Ele mal pode esperar para seguir para o sul na próxima primavera, levando as equipes do 43º Operantar. O oficial sabe, porém, que a segurança das operações depende dos trabalhos em terra, realizados principalmente pelo Centro de Hidrografia da Marinha, no Rio de Janeiro.
“É uma navegação muito desafiadora, o clima antártico apresenta variações bruscas dentro de um mesmo dia. Navegamos por campos de gelo, enfrentamos ventos extremos, que ultrapassam os 120km/h, e ondas de 10 metros. Porém, contamos com pessoal altamente qualificado para realizar avaliações meteorológicas em curtos períodos de tempo. São estas análises que fundamentam as nossas decisões”, disse Navásio, ao Correspondência.
O navio que agora está sob seu comando completou com sucesso uma missão inédita em março. Pela primeira vez, um navio da Marinha cruzou o Círculo Antártico, linha imaginária (latitude) que circunda o Continente Congelado. Principal navio da Marinha para navegação polar, o Maximiano, porém, tem capacidade de romper blocos de gelo mais espessos.
Com isso, o Programa Antártica ganhará, em 2026, um novo navio polar, o Almirante Saldanha, que está sendo construído em um estaleiro no Espírito Santo, ao custo de R$ 692 milhões. A embarcação Classe 6 (superior ao Maximiano, Classe 5), terá capacidade para navegar em mares nunca antes navegados pela Marinha, como campos de gelo de até 1m de espessura. Saldanha substituirá o veterano Ary Rongel, que completou três décadas de serviço na Marinha em abril.
Leia a próxima reportagem da série: O secretário interministerial de Recursos do Mar e o chefe da Estação Antártica falam sobre a importância dos investimentos em pesquisas no continente)
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