A fenda palatina é uma condição congênita comum caracterizada por uma abertura no céu da boca, que dificulta a respiração, a fala e a alimentação. Quando a cirurgia não é possível, pode-se utilizar um obturador, dispositivo que cobre a fissura, restaurando as funções fisiológicas. Foi um deles que a antropóloga Anna Spinek encontrou numa cripta da Igreja de São Francisco de Assis, em Cracóvia, na Polônia. Descrita no Journal of A Archeological Science: Reports, a peça tem três séculos e é mais um exemplo de que, muitos anos antes de os robôs realizarem cirurgias e as máquinas imprimirem próteses, a medicina já salvava vidas com procedimentos inovadores.
“No passado, havia mais cuidado do que as pessoas imaginavam. Temos evidências, literalmente, desde a época dos Neandertais, de que as pessoas cuidavam umas das outras, mesmo em circunstâncias desafiadoras”, destaca a arqueóloga Rachel Kalisher, da Universidade Brown, nos EUA. No ano passado, na revista Plos One, ela descreveu uma trepanação da Idade do Bronze (entre 1550 a.C. e 1450 a.C.).
A técnica é muito mais antiga, mas incomum no Oriente Próximo, onde a descoberta foi feita. Esta é uma cirurgia que ainda hoje é realizada e, no passado, poderia ser ritualística. Na descoberta de Kalisher, a abertura craniana tinha claramente finalidades terapêuticas: os restos mortais apresentavam diversas deficiências, indicando que o indivíduo estava doente.
Se é surpreendente que há algumas centenas de milhares de anos tenham sido realizadas cirurgias ou criadas próteses, o que podemos dizer de uma amputação há 31 mil anos no Sudeste Asiático? Publicada na revista Nature há dois anos, a descoberta fica ainda mais incrível quando se sabe, pelos registros ósseos, que o paciente sobreviveu à operação, que retirou parte da perna esquerda, livre de infecções.
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Exemplo de precisão e conhecimento anatômico
Durante escavações na cripta da Igreja de São Francisco de Assis, em Cracóvia, na Polônia, arqueólogos encontraram o caixão de um homem que morreu com cerca de 50 anos. Dentro da boca havia um objeto de 3cm por 2,3cm, composto por duas partes: uma placa metálica elíptica e uma almofada de lã, costurada à peça, totalizando 5,5g de peso.
A análise mostrou que se tratava de um obturador que, encaixado na cavidade nasal do usuário, fechava uma lacuna no palato, ajudando o homem a engolir, respirar e falar. Observações por microscópio eletrônico e espectroscopia de raios X revelaram que a almofada de lã estava revestida com iodeto de prata – um anti-séptico – e coberta com finas folhas de cobre e ouro. Provavelmente, os metais foram aplicados para evitar infecções.
A informação no caixão de que o sepultamento foi realizado no século XVIII foi confirmada pela datação dos ossos, que tinham três séculos de idade. Segundo a pesquisadora Anna Spinek, do Instituto Hirszfeld de Imunologia e Terapia Experimental, este é o primeiro obturador antigo encontrado na Polônia. “Provavelmente não só na Polónia, mas em toda a Europa”, afirma o autor do artigo sobre a descoberta, publicado no primeiro semestre do ano no Journal of Archeological Science: Reports.
Com base na localização da cripta e na engenhosidade da peça, o antropólogo afirma que o usuário era alguém de posses. Marta Kurek, antropóloga da Universidade de Lodz, na Polónia, e coautora do estudo, diz que ficou impressionada com a qualidade da peça. “Achamos que a descoberta da prótese não é importante apenas do ponto de vista biológico, mas também cultural. A precisão indica um grande artesanato”, destaca. “Devemos lembrar que a prótese é feita de metais que não são tão fáceis de trabalhar como os materiais modernos, mas que se adaptaram perfeitamente ao defeito do homem. É um exemplo de precisão e conhecimento da anatomia humana”.
Segundo a arqueóloga Anna Spinek, o exemplo mais antigo de prótese são dois dedos artificiais, escavados no Egito. Embora a idade exata seja desconhecida, estima-se que as peças tenham entre 2.600 e 3.400 anos. Um deles é feito de madeira e o outro foi construído na técnica de papelão: papel machê, cola, linho e gesso. Como não são articulados, é possível que seu uso tenha sido apenas estético.
Amputação pré-histórica
Há 31 mil anos, onde hoje é a Indonésia, no Sudeste Asiático, uma criança caminhava pelas montanhas íngremes, pontilhadas de cavernas, quando provavelmente foi atingida por uma pedra. O acidente causou traumas no pescoço e na clavícula e, mais grave, resultou no esmagamento do pé esquerdo.
“Claramente, a comunidade reconheceu que era necessário retirar o pé para a criança sobreviver”, diz a bioarqueóloga Melandri Volk, da Universidade de Sydney, na Austrália. Ela foi a responsável por estudar o esqueleto desse indivíduo, que morreu cerca de seis anos após o acidente, provavelmente aos 20 anos, e foi cuidadosamente enterrado na caverna Liang Tebo, uma área calcária que abriga algumas das mais antigas artes rupestres do mundo.
Os ossos foram descobertos por arqueólogos das universidades de Griffith e da Austrália Ocidental. Especialista em bioarqueologia, Melandri Vlok foi convidado para analisar o esqueleto, sem ainda saber que faltava o pé no conjunto. Ao desembrulhar os restos mortais, percebeu que a perna esquerda era do tamanho de uma criança, embora o indivíduo fosse adulto.
Então Vlok notou o coto na ponta da perna. O corte estava limpo, cicatrizado, sem sinais de infecção. “As chances de a amputação ter sido um acidente eram infinitamente pequenas. A única conclusão foi que se tratava de uma cirurgia da idade da pedra.”
Publicada há dois anos na revista Nature, a cirurgia é a amputação mais antiga da história. Além da remoção em si, que exigia precisão no corte de veias, nervos, tecidos e artérias, os arqueólogos ficaram impressionados com os cuidados pós-operatórios, que permitiram que a criança vivesse pelo menos mais seis anos.
“Esta descoberta única desafia as suposições sobre as capacidades passadas da humanidade e deve avançar significativamente a nossa compreensão dos modos de vida humanos nas florestas tropicais”, acredita Vlok.
Operação Elite
No final da Idade do Bronze, por volta de 1550 a.C. e 1450 a.C., dois irmãos foram enterrados juntos sob uma casa de elite no sítio arqueológico de Tel Megiddo, em Israel. Ambos apresentavam lesões múltiplas, consistentes com uma doença crónica e debilitante, que provavelmente os levou à morte.
O exame dos ossos indicou que os irmãos tiveram acesso a tratamentos sofisticados, incluindo trepanação, cirurgia realizada em um deles. Um pedaço quadrado de osso de 30 mm foi removido da parte frontal do crânio. Os arqueólogos suspeitam que ele morreu durante o procedimento ou pouco depois porque não há evidências de cura.
A trepanação é um procedimento antigo e, em algumas sociedades, era realizada ritualisticamente. No entanto, também tem sido aplicado no tratamento de vários distúrbios médicos, aliviando o aumento de pressão no crânio. “Entre as múltiplas descobertas do estudo, gostaríamos de destacar o tipo especial de trepanação craniana, o mais antigo do género na região”, escreveram os investigadores num artigo publicado no ano passado na revista Plos One. “O procedimento incomum foi realizado em um indivíduo de elite com anomalias de desenvolvimento e doenças infecciosas, o que nos leva a postular que a operação pode ter sido uma intervenção para deterioração da saúde”.
Segundo Rachel Kalisher, pesquisadora da Universidade Brown, nos Estados Unidos, e autora do estudo, “o estado avançado das lesões indica que, apesar da gravidade do quadro, esses indivíduos sobreviveram por muitos anos, possivelmente devido aos privilégios de riqueza e status.” O túmulo dos irmãos era adornado com finas iguarias e cerâmicas, reforçando que eram da elite.
O registro mais antigo de trepanação vem da França: um crânio de 6.500 aC. Na China, já foi encontrado um fóssil semelhante, com 7 mil anos.
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