Cuidar e abraçar a infância cria adultos mais saudáveis. Nesse contexto, a terapia familiar é uma boa estratégia para melhorar a convivência e reduzir os danos causados pelos traumas infantis, segundo a ciência. De acordo com uma nova pesquisa, embora o abuso cause feridas físicas e emocionais, o apoio psicológico aos pais e filhos os ajuda a lidar com o trauma.
Cientistas do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência (IoPPN) do King’s College London, no Reino Unido, e da City University of New York, nos Estados Unidos, revelaram que as dificuldades cognitivas associadas aos maus-tratos infantis, especialmente a negligência, foram subestimadas em estudos anteriores.
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Os pesquisadores testaram associações entre registros oficiais de situações violentas e memórias de abuso de adultos em 1.179 participantes. Todos foram submetidos a uma variedade de testes para avaliar suas habilidades cognitivas na idade adulta. Os resultados, publicados na revista Psiquiatria Lancetamostraram que os voluntários, que tinham registro oficial de abuso, apresentavam mais problemas com déficits cognitivos.
A equipa também observou que os défices não eram consistentes entre os diferentes tipos de violência; enquanto os participantes com experiências documentadas de negligência apresentaram problemas cognitivos, aqueles com registros de abuso físico e sexual não apresentaram os mesmos resultados.
Andrea Danese, professora de psiquiatria infantil e adolescente no King’s IoPPN e coautora do estudo, enfatizou a importância de identificar os jovens que sofreram negligência, a fim de implementar o apoio adequado para mitigar as consequências negativas na educação e no emprego.
crianças estimuladas
Os cientistas suspeitam que estes défices podem estar relacionados com a falta de estimulação na infância, a transmissão familiar de desafios cognitivos e outras experiências frequentemente associadas à negligência, como a pobreza. Para eles, a compreensão desses mecanismos pode favorecer o desenvolvimento de intervenções eficazes.
Maria Raquel Cavalcante Silva, psicóloga especializada em avaliação psicológica e triagem do desenvolvimento infantil, destaca que para compreender uma criança é preciso compreender o contexto em que ela está inserida. “Da escola à estrutura familiar. Na infância tudo se desenvolve, os traumas nesta fase podem comprometer diversas áreas, alterando a cognição.”
Um estudo realizado pela Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), nos Estados Unidos, sugere que sessões de psicoterapia com pais e responsáveis podem prevenir doenças graves em crianças que sofreram grandes traumas. Ensaios anteriores indicaram que as crianças beneficiam psicologicamente durante até nove anos após o tratamento entre pais e filhos.
No novo trabalho, os pesquisadores analisaram os efeitos da terapia sobre um biomarcador denominado “acelerador de idade”, que mede o envelhecimento biológico em comparação com a idade cronológica. Este “relógio epigenético” tende a acelerar em pessoas que sofreram traumas na primeira infância, aumentando o risco de doenças cardíacas, cancro e obesidade.
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O ensaio comparou dois grupos de crianças, entre 2 e 6 anos, com experiências traumáticas. Uma parte recebeu até 20 sessões semanais de Psicoterapia Pai-Filho (PPC), enquanto a outra não passou pela intervenção. Os resultados mostraram que quem participou da terapia teve menor aceleração da idade. Embora a diferença não fosse grande, poderia ser significativa, uma vez que pequenas alterações biológicas precoces podem levar a fortes impactos na saúde a longo prazo.
Nicole Bush, psicóloga e coautora do estudo, destacou que a pesquisa destaca a importância de garantir que as famílias que enfrentam traumas tenham acesso à terapia. Mais de 80% das crianças em tratamento e dois terços do grupo de comparação eram latinas, destacando que as famílias de baixos rendimentos estão mais expostas a traumas, mas muitas vezes não são incluídas na investigação médica.
O nível de trauma dos participantes foi superior ao normalmente estudado, tornando os resultados ainda mais significativos. Para o CorrespondênciaAlexandra Sullivan, líder do estudo, afirmou que espera por políticas públicas que abranjam os planos terapêuticos.
“Significa garantir que as seguradoras cubram estas terapias e reembolsem adequadamente os profissionais qualificados. Significa também aumentar o financiamento disponível para esta importante investigação, bem como para formar profissionais na implementação destes tratamentos”, afirmou o cientista.
Jovens deprimidos, adultos ainda mais comprometidos
Especialistas apontam a depressão como uma das consequências do trauma no início da vida. Um estudo francês investigou como os sintomas depressivos, utilizados na infância e na adolescência, e persistentes na idade adulta, estão associados à saúde mental e aos resultados psicossociais em jovens.
O trabalho, publicado na revista Jama Network Open, utilizou dados do Estudo Longitudinal de Desenvolvimento Infantil de Quebec. Os participantes foram acompanhados desde a infância até a idade adulta jovem, sendo a coleta de dados realizada anualmente ou a cada dois anos.
Os sintomas de depressão foram avaliados em diferentes idades, por meio de relatos de mães, professores e autoavaliações dos próprios adolescentes. Os resultados mostraram que estar deprimido quando mais jovem estava associado a maiores chances. Os sintomas de depressão na infância e adolescência foram relacionados com uma menor percepção de apoio social e maior percepção de estresse na idade adulta, embora não tenham sido encontradas associações significativas com comportamentos como bebedeira ou dificuldades na educação e no emprego.
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Os pesquisadores realizaram análises estatísticas rigorosas, ajustando os dados para fatores de risco basais e testes múltiplos, garantindo que as associações observadas eram independentes de variáveis que poderiam influenciar os resultados, como histórico familiar de problemas de saúde mental e condições socioeconômicas.
Uma das limitações destacadas na pesquisa é que muitos estudos anteriores não consideraram uma ampla gama de fatores de confusão que podem afetar a relação entre sintomas de depressão e resultados na vida adulta. Fatores como gênero, renda familiar e relacionamentos familiares problemáticos são conhecidos por influenciar tanto a depressão quanto o funcionamento psicossocial.
Simone Paes, psiquiatra e professora do Idomed, na Bahia, uma criança deprimida se afasta do convívio social e, portanto, perde nas fases posteriores as habilidades sociais necessárias ao seu pleno desenvolvimento psicossocial. “O adolescente que fica deprimido e, na fase de expansão, encolhe, tende a desenvolver novos episódios depressivos na idade adulta.”
Para a especialista, o apoio familiar e a detecção e intervenção precoce eliminam impactos nos estudos, no trabalho e na vida social, porém, se não for percebida e tratada, a personalidade debilitada sofrerá alterações. “Os jovens adultos que apresentam depressão desde a infância tendem a necessitar de um período mais longo de intervenção para recuperação e, nesta fase, terão dificuldades psicossociais com impacto no âmbito funcional”.
Para os cientistas, os resultados do estudo têm implicações significativas para a formulação de políticas de saúde mental. A identificação e o tratamento precoces dos sintomas de depressão na infância e adolescência podem ser cruciais para melhorar a saúde mental e os resultados psicossociais na idade adulta. Isto sugere a necessidade de intervenções direcionadas que abordem não apenas os sintomas, mas também os fatores de risco associados.
Três perguntas para…
Quão importante é a terapia precoce para crianças que enfrentam traumas?
Existem vários tipos de intervenções terapêuticas, falar em intervenção precoce pressupõe especificidade na clínica do bebé. A intervenção precoce é uma abordagem multidisciplinar que engloba um conjunto de estratégias que visam identificar precocemente algum tipo de atraso no desenvolvimento. Tem um foco maior em crianças que apresentam uma evolução diferente da esperada. Isso pode se manifestar de diversas formas, como habilidades sociais, motoras, cognitivas ou emocionais. O cérebro da criança apresenta maior plasticidade neuronal, sendo mais flexível e adaptável às intervenções terapêuticas.
Como a terapia pode ser usada para fortalecer o relacionamento entre pais e filhos em situações traumáticas?
Existe um conjunto de necessidades básicas para que uma criança cresça saudável. Entre as dificuldades mais encontradas para fortalecer o relacionamento entre pais e filhos está a comunicação. Essa falha leva o sistema familiar a não falar abertamente sobre determinadas experiências ou sentimentos, por medo da reação do outro. Nessas circunstâncias, ocorre uma conversa falha, que nos impede de entrar em contato de forma mais autêntica. A terapia pode ser utilizada como um facilitador no processo que ajuda a vítima a não estar sempre hipervigilante diante de situações que a lembrem de seu trauma. Além disso, permite que a comunicação sobre o trauma seja mais aberta.
Quais são os principais desafios que os profissionais de saúde enfrentam na implementação da terapêutica em populações vulneráveis?
A discussão sobre a prática e o compromisso da psicologia com a população vulnerável é alvo frequente de produções e discussões científicas. Atualmente há a implementação de programas de assistência social, numa linha de ações específicas, muitas vezes associadas à caridade, que procuram amenizar um problema imediato, mas não trabalham as suas raízes. A participação da população acaba se concentrando no atendimento de demandas, caracterizando-se mais como receptora do que como agente participativo de mudança na sua própria história.
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