Num mundo cada vez mais sufocado pela emissão de gases com efeito de estufa, as consequências das alterações climáticas, como o excesso de calor, podem comprometer os esforços das últimas décadas para reduzir a incidência de doenças cardiovasculares (DCV) e a mortalidade precoce associada. Enquanto campanhas educativas e ações para prevenir fatores de risco como hipertensão, obesidade e tabagismo tentam reduzir a carga global das DCV, as intervenções humanas no meio ambiente aumentam os casos de infarto, acidente vascular cerebral e mortes por essas causas.
“A população está exposta a agentes tóxicos, como o chumbo, presentes na poluição do ar, e isso impacta negativamente na saúde vascular, aumentando o risco de acidente vascular cerebral”, afirma Maciel Pontes, neurologista do Hospital de Base do Distrito Federal. “Além disso, as altas temperaturas estressam o sistema cardiovascular, causando desidratação e elevação da pressão arterial, fatores que também aumentam esse risco”.
A edição deste ano do relatório anual da Federação Mundial do Coração (WHF) foi dedicada aos impactos da poluição antropogénica na saúde cardiovascular. Segundo o documento, a contaminação atmosférica é o sexto maior fator de risco para mortalidade por todas as causas em todo o mundo. Os agentes tóxicos suspensos no ar estão associados a doença arterial coronariana, doença cerebrovascular, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca, arritmia cardíaca, tromboembolismo e hipertensão pulmonar, entre outras DCV.
Contaminação
As estatísticas são alarmantes: combinadas, a poluição interior (muito comum em casas com fogões a lenha) e a atmosfera estão relacionadas com cerca de 7 milhões de mortes prematuras por ano. Mais de 50% são atribuídos a causas cardiovasculares. Um quinto de todas as mortes por DCV está relacionada ao ar contaminado.
A maioria dos estudos que associam distúrbios ambientais a problemas de saúde são observacionais, ou seja, não estabelecem relação de causa e efeito. No entanto, existem vários mecanismos fisiológicos que explicam como a poluição e as alterações climáticas aumentam o risco de DCV. No caso dos poluentes — principalmente partículas muito pequenas chamadas PM2,5 —, quando inalados, entram na corrente sanguínea, estreitando e endurecendo as artérias, além de aumentar a tensão no músculo cardíaco.
Em setembro, um estudo publicado na revista The Lancet Neurology alertou que, além dos fatores metabólicos, a poluição e o calor são alguns dos principais agentes por trás da explosão nos casos de AVC. Entre 1990 e 2021, a prevalência aumentou 70% e a mortalidade por esta causa aumentou 44%. “Notavelmente, a contribuição das altas temperaturas para problemas de saúde e morte prematura devido a acidente vascular cerebral aumentou 72% desde 1990, uma tendência que deverá crescer no futuro”, alerta o artigo.
Ataque cardíaco
Além do acidente vascular cerebral, as condições cardíacas são afetadas pelo clima. “O risco de infarto pode aumentar até 20% em dias de calor intenso”, afirma Cláudio Catharina, gerente de cardiologia da Unidade Coronariana do Hospital Icaraí, em Niterói, e membro da Sociedade Europeia de Cardiologia. “Isso ocorre porque o corpo humano, ao tentar se adaptar às altas temperaturas, aumenta o esforço cardíaco, acelerando os batimentos cardíacos e causando vasodilatação”, afirma.
A médica explica que a perda excessiva de líquidos pela transpiração também pode desidratar o corpo, afetando o sistema circulatório. “Isso aumenta a pressão arterial e a viscosidade do sangue, fatores que contribuem diretamente para a formação de coágulos e, consequentemente, para o risco de infarto”.
Pacientes com insuficiência cardíaca – quando o coração não consegue bombear o sangue adequadamente – são particularmente afetados por temperaturas extremas, descobriu um estudo internacional com dados de 27 países, incluindo o Brasil. A pesquisa, coordenada pela Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, constatou um aumento de 12% no risco de morte por essa causa em dias muito quentes. Períodos de frio excessivo foram associados a uma chance 37% maior de morte.
Os pesquisadores disseram que são necessários mais estudos para explicar os efeitos dos extremos climáticos em pacientes com insuficiência cardíaca. Mas realçam a necessidade de acção imediata. “Há uma necessidade urgente de desenvolver medidas que ajudem a nossa sociedade a mitigar o impacto das alterações climáticas nas doenças cardiovasculares”, disse o coautor Haitham Khraishah, investigador do Centro Médico da Universidade de Maryland (UMMC).
Novos tratamentos
O arsenal de tratamento para doenças cardiovasculares tem sido reforçado com inibidores de PCSk9, anticorpos monoclonais que reduzem significativamente os níveis de “colesterol ruim”, o LDL, principalmente nos casos de hipercolesterolemia familiar, que não responde às abordagens tradicionais. Os inibidores Neprislin, para hipertensão, e SGLT-2, indicado para insuficiência cardíaca, são algumas novidades na área. “Um dos maiores avanços na prevenção das DCV são os agonistas dos receptores GLP-1. Esses medicamentos, inicialmente concebidos para o tratamento do diabetes, têm demonstrado grande benefício no controle da obesidade e, portanto, em longo prazo, podem ter impacto sobre os riscos das DCV de forma positiva”, explica Renato David, cardiologista do Instituto do Coração de Taguatinga.
Fatores de risco compartilhados
Com o envelhecimento da população, a Organização Mundial da Saúde (OMS) projeta o número de pessoas que vivem com demência em 78 milhões. Estudos associam a neurodegeneração a condições cardiovasculares. Este mês, por exemplo, um artigo publicado na revista Heart afirmou que pessoas com fibrilação atrial (um tipo de arritmia) têm um risco 39% maior de apresentar problemas de memória e pensamento. A doença coronariana aumenta a chance de declínio cognitivo em 27%, e 50% dos pacientes com ataque cardíaco sofrem desta mesma condição.
“As pessoas não relacionam um infarto ou uma arritmia aos 60, 70 anos com a chance muito maior de desenvolver um problema neurológico-cognitivo 20 anos depois”, afirma Carisi Polanczyk, chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. “Precisamos chamar a atenção das pessoas para esse tema e agir com muito mais antecedência, com a devida atenção às alterações nos fatores de risco comuns a muitas doenças cardíacas e neurológicas”, afirma.
Combinação
Segundo o médico, a associação é complexa e envolve o compartilhamento de fatores de risco, como hipertensão, inflamação, dislipidemia, tabagismo, doença vascular e doença aterosclerótica. “Quando juntos, acabam potencializando o aparecimento das duas doenças — cardíaca e neurológica”, alerta.
Carisi Polanczyk destaca que doenças cardíacas que não são necessariamente vasculares, como insuficiência, arritmia e fibrilação atrial, também têm sido associadas a danos à saúde mental, seja pelo desenvolvimento de pequenos derrames ou micro-hemorragias. “Pacientes com insuficiência cardíaca acabam tendo uma redução da perfusão, uma redução da circulação sanguínea no cérebro, o que prejudica, ao longo da vida, as condições essenciais para o funcionamento cerebral”. (PÓ)
Vasto compromisso
“As alterações climáticas já estão a afectar a nossa saúde cardiovascular; a exposição ao calor extremo pode afectar negativamente a frequência cardíaca e a pressão arterial; a exposição ao ozono ou à poluição atmosférica causada por incêndios florestais pode desencadear inflamação sistémica; viver no meio de um desastre natural pode causar sofrimento psicológico; e os furacões e as inundações podem perturbar a prestação de cuidados de saúde através de cortes de energia e perturbações na cadeia de abastecimento. A longo prazo, as projecções mostram que as alterações climáticas reduzirão a produção agrícola e a qualidade nutricional do abastecimento alimentar, o que também pode comprometer a saúde cardiovascular.
Dhruv S. Kazi, cirurgião cardiovascular do Beth Israel Deaconess Medical Center, nos Estados Unidos e autor de um estudo publicado na Jama sobre o impacto do clima nas doenças do aparelho circulatório
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