Um aparelho portátil e não invasivo para ser usado em casa pode aumentar o arsenal de tratamentos para a depressão, doença que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), atinge 280 milhões de pessoas —no Brasil, a prevalência é de 15,5%, segundo ao Ministério da Saúde. Publicada na revista Nature Medicine, a pesquisa de fase 2 mostrou melhora significativa nos sintomas de pessoas que usaram o equipamento doméstico, sob orientação médica.
O estudo incluiu 174 participantes com mais de 18 anos com diagnóstico de depressão grave a moderada. Eles foram divididos aleatoriamente para testar o aparelho de estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC), técnica não invasiva que aplica uma corrente fraca, entre 0,5 e 2 miliamperes, diretamente no couro cabeludo, por meio de dois eletrodos. Os pesquisadores alertam que o equipamento não tem relação com a eletroconvulsoterapia (ECT), que fornece cerca de 800 miliamperes ao cérebro e só pode ser feita em ambiente clínico, com anestesia e rigoroso acompanhamento médico.
A ETCC tem sido aplicada como coadjuvante no tratamento de diversas doenças e condições, como dores crônicas, reabilitação motora e lesões neurológicas. Também é utilizado para depressão, com bons resultados. Geralmente as sessões são realizadas em consultório e, dependendo da indicação, podem ser acompanhadas por médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, entre outros profissionais de saúde.
O presente estudo investigou a eficácia da técnica quando realizada em casa, com o dispositivo operado pelo usuário. Os participantes foram divididos aleatoriamente entre os grupos ativo e placebo. Em todos os casos, os pacientes receberam o aparelho, mas no segundo braço não houve corrente, embora os voluntários não soubessem disso.
Sessões
Ao longo de dois meses e meio, os participantes utilizaram o equipamento. Nas primeiras três semanas, foram cinco sessões de 30 minutos. Nos anos seguintes, o número caiu para três. O objetivo da neuromodulação é estimular grupos neuronais, conforme indicação médica.
Ao final do estudo, os pesquisadores descobriram que os pacientes que realmente receberam a corrente elétrica tiveram uma resposta três vezes melhor que o grupo placebo: 44,9% tiveram remissão dos sintomas, contra 21,8%. A autora sênior do estudo, Cynthia Fu, professora de Neurociências e Psicoterapia do King’s College London, na Inglaterra, lembra que, embora a combinação de antidepressivos e terapia se mostre eficaz para algumas pessoas, muitos pacientes abandonam o tratamento medicamentoso, especialmente devido aos efeitos colaterais.
“Nesses casos, a ETCC pode ser uma opção de primeira linha”, afirma. “Não existe uma intervenção médica perfeita. Nossa esperança é que a ETCC possa fornecer uma terceira alternativa viável para pessoas com depressão moderada a grave controlarem melhor seus sintomas”, disse Rachel Woodham, primeira autora do artigo e pesquisadora da Universidade de East London. .
Coautor do trabalho, o brasileiro Rodrigo Machado-Vieira, pesquisador da UTHealth Houston, nos Estados Unidos, destaca que o tratamento é seguro. “Os resultados deste estudo, que testou ETCC domiciliar, podem representar um avanço importante no campo dos transtornos de humor para melhorar a viabilidade e resposta terapêutica com esta nova modalidade de neuromodulação”, argumenta.
“Esses resultados confirmaram um perfil positivo de segurança e eficácia semelhante aos estudos iniciais em pacientes com depressão e transtorno bipolar”. Para ele, o tratamento domiciliar pode facilitar o acesso a um número maior de pacientes.
Joaquim Raduá, psiquiatra da Universidade de Barcelona, na Espanha, que não participou do estudo, acredita que o efeito no grupo que recebeu a corrente elétrica foi significativo. “O tamanho desse efeito foi de 0,4, valor comparável ao observado com os antidepressivos”, diz.
Para a pesquisadora, ter mais opções terapêuticas pode aumentar a adesão ao tratamento, pois nem todos os pacientes respondem da mesma forma. “O resultado é encorajador, pois sugere que este dispositivo pode tornar-se mais uma alternativa no leque de tratamentos disponíveis para a depressão, como medicamentos, psicoterapias ou exercício físico, entre outros”.
Transtorno alimentar
A estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC) realizada em casa também teve sucesso em um estudo do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência (IoPPN) do King’s College London, Inglaterra, para transtorno da compulsão alimentar periódica. O chamado TCAP é uma doença mental grave que pode afetar qualquer pessoa, independentemente da idade e do sexo. Os pacientes apresentam episódios recorrentes de perda de controle sobre a ingestão de alimentos, consumindo muita comida em um curto período até ficarem desconfortavelmente saciados. Geralmente, o transtorno é acompanhado por ataques de ansiedade e humor.
No estudo, publicado na revista BJPsychOpen, os pesquisadores do IoPPN desenvolveram um tratamento que combina ETCC com um programa de treinamento que visa padrões de atenção em torno dos alimentos. O resultado foi significativo: os episódios de compulsão alimentar foram reduzidos de cerca de 20 vezes por mês, no início, para seis vezes no mesmo período, um mês e meio depois.
Terapia
No total, 82 voluntários participaram do estudo. Eles foram divididos em quatro grupos: 10 sessões de ETCC autoadministrada em casa mais terapia de modificação do viés de atenção (MVA); 10 sessões simuladas (sem corrente elétrica) com AMIU; Apenas 10 sessões de AMIU; nenhum tratamento.
As mudanças de comportamento foram mais pronunciadas no primeiro grupo, em comparação aos demais. Esses participantes também relataram perda de peso entre 3,5kg e 4kg após seis semanas. Outro ganho foi a redução dos transtornos de humor, observada apenas em pacientes que utilizaram ETCC mais AMIU.
“Os tratamentos atuais para o transtorno da compulsão alimentar periódica só são eficazes para algumas pessoas e muitas precisam de apoio adicional ou diferente para melhorar”, disse Michaela Flynn, pesquisadora do IoPPN e primeira autora da pesquisa, em comunicado. “Nosso estudo é o primeiro a analisar uma nova opção de tratamento domiciliar que oferece uma abordagem diferente para o tratamento do transtorno da compulsão alimentar periódica”. (PÓ)
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