Estudar o cérebro em profundidade é crucial para desvendar os complexos mecanismos que governam os distúrbios psiquiátricos e neurodegenerativos. Ao investigar variações genéticas e alterações na composição dos tipos de células cerebrais, os cientistas podem identificar diferenças patológicas entre homens e mulheres e avaliar discrepâncias entre os cérebros de pessoas doentes ou perturbadas e os de pacientes saudáveis. Melhorar o detalhe permite-nos desenvolver tratamentos personalizados e mais eficazes, atendendo às necessidades específicas de cada grupo.
Com foco nesse tipo de conhecimento, a revista Science publicou, ontem, uma série com mais de uma dezena de pesquisas com resultados do Consórcio PsychEncode. O trabalho procurou esclarecer os mecanismos moleculares subjacentes à esquizofrenia, ao transtorno bipolar e ao transtorno do espectro do autismo, utilizando tecidos humanos nas investigações.
Um estudo multicêntrico, detalhado na revista Science Advances, explorou mudanças nos tipos de células cerebrais em três importantes condições neuropsiquiátricas: doença de Alzheimer, transtorno do espectro do autismo (TEA) e esquizofrenia.
Usando amostras post-mortem de cérebro humano de 1.270 doadores, os pesquisadores descobriram mudanças significativas na composição dos tipos de células associadas a esses diagnósticos. Técnicas avançadas de avaliação de células individuais e da genética tornaram possível identificar alterações específicas em diversas estruturas.
Os resultados sugerem uma possível relação entre a doença de Alzheimer e a perda de células endoteliais. O artigo também destacou variações nos tipos de células cerebrais relacionadas à idade e ao sexo, enfatizando a importância de considerar esses fatores na compreensão dos distúrbios neuropsiquiátricos.
Chloe Yap, principal autora do trabalho e cientista das universidades de Queensland e da Califórnia, nos EUA, afirma que a psiquiatria fica atrás de todas as outras áreas da medicina no que diz respeito ao conhecimento sobre os mecanismos biológicos subjacentes aos principais distúrbios. “Sem esse conhecimento fundamental, é muito difícil avançar no diagnóstico ou nas intervenções. Para a maioria das condições neuropsiquiátricas, nem sabemos se o número de células contribui para o desenvolvimento desses distúrbios”.
O cientista explica que, no estudo, a equipe contou os tipos de células cerebrais. “Comparamos então como a composição das células cerebrais difere na doença de Alzheimer, na esquizofrenia e no autismo em comparação com pessoas sem esses diagnósticos”.
A integração de dados genéticos permitiu identificar loci genéticos chave – posições específicas no genoma que são importantes para determinadas funções biológicas ou que estão associadas a características específicas, incluindo doenças – associadas a alterações na composição dos tipos de células.
Esses loci implicam genes relacionados à unidade neurovascular e aos neurônios excitatórios, oferecendo informações valiosas sobre as bases biológicas da doença de Alzheimer, TEA e esquizofrenia. Para os cientistas, estas descobertas têm implicações significativas para o campo da neurociência e da prática clínica.
Mauricio Teixeira, neurologista membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e do Grupo de Neurologia Cognitiva e Comportamental da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a ciência sabe atualmente que esses distúrbios são baseados em alterações microscópicas no estrutura cerebral. “Estudos como este levam a uma melhor compreensão dos diferentes mecanismos de cada doença, detalhando como as diferentes células do cérebro estão envolvidas neste processo”.
“O trabalho revelou uma perda de células endoteliais que compõem os vasos sanguíneos presentes em todo o cérebro. Sabemos que essas células estão relacionadas ao depósito de algumas proteínas anormais na doença de Alzheimer, além de terem a ver com o processo de neuroinflamação que ocorre juntos”, detalhou Teixeira. Para o especialista, “após compreender melhor o papel de cada uma dessas células, é possível desenvolver terapias e medicamentos com diferentes estruturas ou moléculas”.
Paralelamente, outro ensaio, liderado por instituições de diferentes países, e publicado na Science Translational Medicine, analisou dados de 2.160 amostras cerebrais post-mortem de pacientes com esquizofrenia, transtorno bipolar e transtorno do espectro do autismo. A investigação destacou a importância de uma abordagem estratificada por sexo, revelando maior disfunção transcriptômica nas mulheres.
Diferenças
Os resultados destacam diferenças significativas na expressão genética e na conectividade, sugerindo que fatores genéticos e ambientais influenciam a carga de disfunção em transtornos psiquiátricos. As mulheres mostraram variações notáveis na conectividade genética – inter-relação e coordenação na expressão de genes numa célula ou entre diferentes células e tecidos – em comparação com os homens, especialmente nas vias imunológicas e sinápticas.
Com base nos resultados, existem diferenças patológicas significativas entre os sexos, sugerindo a necessidade de abordagens terapêuticas específicas de género para tratar eficazmente estas doenças complexas.
Luan Diego Marques, psiquiatra de Brasília, ressalta que a análise transcriptômica, que é a transcrição do código genético, é fundamental porque permite ver como a expressão gênica varia entre homens e mulheres com transtornos psiquiátricos.
“Isso é importante porque pode explicar por que certos distúrbios são mais comuns ou mais graves em um sexo do que no outro. Compreender essas diferenças pode nos ajudar a desenvolver tratamentos mais específicos e eficazes, considerando as diferentes necessidades biológicas entre os pacientes”, disse o psiquiatra.
Além das implicações clínicas, para os pesquisadores, compreender essas diferenças pode auxiliar no desenvolvimento de tratamentos personalizados e mais eficazes.
TEA no mapa
Um trabalho liderado pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos, e publicado na revista Science, abordou a importância da genômica unicelular na compreensão das alterações celulares e dos circuitos cerebrais no transtorno do espectro do autismo (TEA). Ao analisar o córtex frontal de 33 indivíduos com TEA e 30 pacientes sem o transtorno, foram identificadas alterações transcriptômicas, transcrição de DNA e moldes proteicos, específicos de alguns tipos celulares, incluindo diferentes neurônios. Essas descobertas refinam o conhecimento das alterações celulares e de circuitos no cérebro no TEA, estabelecendo uma ligação entre a suscetibilidade genética ao autismo e os circuitos e vias moleculares e celulares. Para os autores, os resultados apontam um caminho para a compreensão das interações celulares e do desenvolvimento terapêutico
na desordem.
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