No dia 30 de dezembro de 2019, Li Wenliang, oftalmologista do Hospital Central de Wuhan, na China, estava de plantão quando recebeu um alerta do serviço municipal de saúde. “Há sete casos de síndrome respiratória aguda grave (Sars) ligados ao Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan em seu hospital.” Li encaminhou a mensagem via WeChat – um serviço de mensagens semelhante ao WhatsApp – para um grupo de ex-colegas médicos. Pouco mais de dois meses depois, o médico entraria nas estatísticas de mortalidade pela estranha doença que rapidamente se espalharia pelo mundo. De hoje até terça, série do Correio mostra o que já se sabe sobre a Covid-19 e os desafios que persistem no tratamento da doença.
Embora tenha sido apenas no dia 10 de janeiro de 2020 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) se referiu à nova infeção como 2019-nCoV, hoje sabe-se que o vírus já tinha surgido em outubro do ano anterior. Joel O. Wertheim, professor da Divisão de Doenças Infecciosas da Universidade da Califórnia, em San Diego, usou ferramentas de datação molecular e simulações epidemiológicas para estimar o surgimento do Sars-Cov-2. Segundo o estudo, o patógeno provavelmente circulou sem ser detectado dois meses antes dos primeiros casos humanos descritos.
“Nosso estudo foi desenhado para responder à questão de quanto tempo o Sars-CoV-2 poderia ter circulado na China antes de ser descoberto”, lembra Wertheim. “Combinámos três informações importantes: uma compreensão detalhada de como se espalhou em Wuhan antes do confinamento, a diversidade genética do vírus na China e relatos dos primeiros casos de Covid-19 no país”, explica. Os resultados mostraram um limite máximo em meados de outubro de 2019, na província de Hubei.
Cinco anos depois, com o conhecimento sobre a “pneumonia”, como foi inicialmente descrita a Covid-19, pode-se dizer que, pelo menos por agora, a humanidade tem o controlo do vírus que já matou mais de 7 milhões de pessoas em 229 países e territórios. . “Embora o vírus continue a desafiar-nos com a sua evolução, temos vacinas que funcionam e um sistema de vigilância que fornece dados para informar o que poderão ser atualizações anuais no futuro. populações vulneráveis”, acredita Adam Lauring, especialista em doenças infecciosas do Centro Médico Acadêmico da Universidade de Michigan.
Lauring explica que não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, os cientistas ainda estão a trabalhar para desvendar questões em aberto, como os impactos a longo prazo da doença, bem como previsões mais precisas dos padrões de infecção. Mas, para ele, um dos principais desafios será aplicar as lições aprendidas nos últimos cinco anos a futuras pandemias “e evitar cometer novamente os mesmos erros”.
Coordenador de infectologia e chefe da Comissão de Controle de Infecção do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, Werciley Júnior concorda que hoje se sabe bem como o vírus atua no organismo e como o organismo reage a ele. “O que ainda precisamos é de avanço no tratamento e no acesso aos medicamentos que já existem”, afirma.
Vacinas
Um marco da pandemia de covid-19 foi o rápido desenvolvimento de vacinas eficazes contra o vírus —as que tiveram melhores resultados foram as vacinas de mRNA, inicialmente desenvolvidas pelas empresas de biotecnologia Moderna, nos Estados Unidos, e BioNTech, na Alemanha. A tecnologia do RNA mensageiro foi estudada há três décadas, o que acelerou a produção de imunizantes não apenas eficientes, mas seguros.
“Pode-se dizer que o paradigma de desenvolvimento de vacinas foi transformador. Sem dúvida, a Covid-19 foi um divisor de águas”, avalia Manuel Palácios, infectologista do Centro de Segurança Assistencial (CSA) do Hospital Anchieta. “Além da tecnologia de RNA mensageiro, o uso de plataformas adaptáveis, como o vetor viral, também acelerou o processo. Mais importante ainda, houve uma colaboração global sem precedentes, compartilhamento de dados em tempo real entre cientistas e indústrias. Esta experiência mudou completamente como enfrentaremos futuras doenças infecciosas Hoje sabemos que é possível produzir vacinas de forma mais rápida e eficaz”, afirma.
Linha do tempo
Relembre os principais acontecimentos do primeiro ano da Covid-19:
Dezembro de 2019
Em meados do mês, um grupo de pacientes é internado em Wuhan com pneumonia de causa desconhecida. No dia 31, o escritório da OMS na China reporta os casos.
Janeiro de 2020
No primeiro dia do ano, o Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, em Wuhan, está fechado. Dois dias depois, a China reporta mais de 40 casos à OMS. No dia 11, o vírus é sequenciado e o primeiro paciente morre. No dia 23, Wuhan entra em quarentena. No final do mês, há casos na China, Tailândia, Japão, Coreia do Sul e Estados Unidos.
Fevereiro de 2020
No dia 4, a Food and Drug Administration (EUA) aprova o primeiro kit de detecção do Sars-CoV-2. Seis dias depois, 1.013 mortes foram declaradas em todo o mundo.
No dia 26, o Brasil confirma o primeiro
caso da doença.
Março de 2020
No dia 11, após mais de 118 mil casos em 114 países e 4.291 mortes, a OMS declara a covid uma pandemia —o Brasil passa então a ter 52 casos. Seis dias depois, a empresa norte-americana Moderna anunciou o primeiro teste de uma vacina em humanos. No dia 17 é confirmada a primeira morte no Brasil, que já tem quase 9 mil casos suspeitos. Escolas, empresas e repartições públicas fecham em todo o mundo.
Abril de 2020
Mais de 1 milhão de casos em todo o mundo. No dia 2, as máscaras passam a ser obrigatórias no Brasil. Começam os estudos com plasma convalescente, terapia que mais tarde não se mostrará eficaz. No dia 23, o Brasil registrou 407 mortes em 24 horas, um recorde.
Maio de 2020
No dia 5, o Brasil ultrapassa a China no número de mortes globais. Questionado sobre os números, o então presidente, Jair Bolsonaro, diz: “E daí? Eu não faço milagres”. No dia 15, estudo mostra que a taxa de sobrevivência de pacientes intubados varia de 10% a 50%. Um grande estudo publicado no The Lancet mostra que a cloroquina, um medicamento para a malária, não é eficaz para a covid.
Junho de 2020
O Banco Mundial afirma, no dia 8, que a pandemia levará o mundo à pior recessão desde a Segunda Guerra Mundial. Dez dias depois, a Moderna anunciou que as primeiras avaliações da vacina mRNA foram positivas. Anunciada parceria da AstraZeneca com a Universidade
de Oxford para o desenvolvimento
de outra vacina.
Julho de 2020
Mais de 200 cientistas assinaram uma carta aberta à OMS pedindo para considerar a transmissão aérea nas diretrizes de prevenção. FioCruz fecha parceria com AstraZeneca para testar a vacina no Brasil.
Agosto de 2020
Dia 8, Brasil chega a 100 mil
mortes. No dia 24, a Universidade de
Hong Kong confirma primeiro caso
de reinfecção.
Setembro de 2020
A variante B.1.1.7 é identificada no Reino Unido. Um estudo mostra que a variante britânica é até 64% mais letal.
A parceria entre Pfizer e BioNTech amplia a fase 3 dos testes clínicos da vacina para 44 mil participantes. Um milhão de pessoas morreram em
10 meses, diz a OMS.
Outubro de 2020
No dia 17, o mundo bate novo recorde de casos de Covid-19 registrados em apenas um dia, com mais de 400 mil casos. O Brasil termina o mês com 5.494.376 casos e 158.969 mortes.
Novembro de 2020
A revista Nature mostra que a maioria dos casos tem origem em espaços interiores, como locais de culto, restaurantes e escolas. No dia 16, a Moderna anuncia que a vacina tem 95,4% de eficácia.
Dezembro de 2020
Os Estados Unidos são o primeiro país a vacinar contra a Covid. As 31ª marcas
o aniversário do primeiro caso
relatado da doença.
Fonte: Museu CDC
Mudanças ambientais abrem caminho para novas doenças
Especialistas dizem que, hoje, os sistemas de vigilância estão mais preparados para futuras pandemias, ao contrário do que aconteceu em 2020, na pandemia de covid-19. “Ficou claro que muitas nações não estavam preparadas para um evento desta magnitude”, destaca Manuel Palácios, infectologista do Centro de Segurança Assistencial (CSA) do Hospital Anchieta. “Mas aprendemos muito e agora temos melhores sistemas de vigilância epidemiológica e uma compreensão mais clara da importância de investir na saúde pública”, afirma. No entanto, o especialista em doenças infecciosas alerta: “Dizer que o mundo está totalmente preparado seria um exagero. Ainda existem desigualdades gritantes no acesso à vacina e ao tratamento. Isto continua a ser uma vulnerabilidade global”.
A próxima pandemia, embora impossível de prever, pode não estar tão longe, alertam os investigadores. Especialmente devido aos avanços humanos nos habitats de milhares de espécies, Michael Ward, veterinário e investigador da Universidade de Sydney, na Austrália, afirma que o surgimento de novos vírus zoonóticos (de origem animal) é uma possibilidade muito elevada.
Ward é um dos autores de um estudo publicado na revista Transboundary and Emerging Diseases que mostra como os humanos estão a criar ou a exacerbar condições ambientais que podem levar a novas pandemias. Segundo os investigadores, a pressão sobre os ecossistemas, as alterações climáticas e o desenvolvimento económico são factores-chave associados à diversificação dos agentes patogénicos. Isto tem o potencial de desencadear surtos globais.
Zoonoses
O estudo também confirma que o crescimento populacional e o crescimento da densidade populacional são os principais impulsionadores do surgimento de doenças zoonóticas. A população humana global aumentou de cerca de 1,6 mil milhões em 1900 para cerca de 7,8 mil milhões hoje, exercendo pressão sobre os ecossistemas.
“À medida que a população humana aumenta, também aumenta a procura de habitação. Para satisfazer esta procura, os humanos estão a invadir habitats selvagens”, diz Ward. Na modelagem foram identificados os países com maior vulnerabilidade a novas doenças. “Espera-se que países com longitudes de -50 a -100 como o Brasil, países desenvolvidos como os Estados Unidos e países densos como a Índia tenham uma diversidade maior de doenças emergentes”, diz ele.
Segundo Ward, está claro que o atual modelo de desenvolvimento não só prejudica o meio ambiente, mas é responsável pelo surgimento de doenças infecciosas, como a Covid-19. “A nossa análise sugere que o desenvolvimento sustentável não é crítico apenas para a manutenção dos ecossistemas e para abrandar as alterações climáticas”, destaca. (PÓ)
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