A descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) levantou uma série de dúvidas sobre os impactos da substância psicoativa na saúde.
Um dos pontos envolve o chamado transtorno por uso de drogas. maconhauma condição ainda pouco estudada por Ciência e praticamente desconhecido do público em geral.
A condição, que pode afetar até dois em cada dez usuários de maconha (entenda abaixo)está relacionada ao abuso de drogas e gera prejuízos significativos no bem-estar e na qualidade de vida.
O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que há grande dificuldade em diferenciar os usuários de dependentes — ou aqueles indivíduos que não se enquadram nem na primeira nem na segunda categoria.
“Mas o transtorno por uso de cannabis seria equivalente ao que se chama de dependência”, explica.
Segundo o psiquiatra, esse quadro pode se manifestar de diversas formas. Para começar, está relacionado à quantidade e frequência de consumo.
“O transtorno atrapalha as atividades habituais de trabalho e estudo, prejudica as relações interpessoais e gera desinteresse”.
“Além disso, qualquer pensamento ou tentativa de redução do consumo gera sintomas intensos de ansiedade ou depressão”, caracteriza Silveira, que estuda a dependência há 40 anos.
Quantas pessoas têm o transtorno?
Silveira orientou um dos primeiros (e únicos) estudos a avaliar a saúde mental e a qualidade de vida de pessoas que fazem uso recreativo de cannabis no Brasil. O trabalho foi publicado em dezembro de 2021.
Por meio de um questionário online, que contou com a participação de 7.405 adultos, os especialistas descobriram que 17,1% dos participantes se classificaram como usuários ocasionais e 64,6% afirmaram consumir maconha com frequência.
7,7% dos entrevistados declararam-se “usuários disfuncionais”, o que pode ser classificado como transtorno no uso dessa substância.
“Esse número está muito próximo do observado em outras pesquisas. Nos Estados Unidos, cerca de 9% dos usuários de maconha são dependentes”, compara Silveira.
Como comparação,
A pesquisa brasileira sobre cannabis também observou que tais usuários disfuncionais eram mais afetados em termos de bem-estar: tinham pior qualidade de vida, além de apresentarem com maior frequência doenças como depressão e ansiedade em comparação com aqueles que se entendiam como ocasionais ou ocasionais. usuários frequentes.
Outra investigação realizada pelo Kaiser Permanente Health Research Institute, nos Estados Unidos, calculou a prevalência do transtorno no estado de Washington, onde a maconha para uso recreativo é legalizada (e não apenas descriminalizada, como é o caso no Brasil após o decisão do STF).
Os dados foram publicados na revista especializada Jama Network Open em agosto de 2023.
Os autores entrevistaram 1.463 indivíduos que consumiram cannabis nos últimos 30 dias.
Seguindo critérios estabelecidos em manuais internacionais de psiquiatria, observaram que o transtorno por uso de substâncias afetou 21,3% dos participantes, ou um quinto da amostra total.
A taxa foi a mesma entre aqueles que consumiram maconha por motivos recreativos, medicinais ou ambos.
Mas a gravidade da doença variou significativamente entre estes três grupos.
Segundo a pesquisa, 1,3% dos usuários de cannabis para fins medicinais apresentavam o transtorno em níveis moderados ou graves.
Essa taxa subiu para 7,2% naqueles que faziam uso recreativo e para 7,5% no grupo misto (que misturava uso medicinal e recreativo).
Mas como é que estes números se comparam à dependência da nicotina e do álcool, drogas legais amplamente consumidas em grande parte do mundo?
Um estudo do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos coletou dados de 152.000 americanos que fumaram cigarros de tabaco nos 30 dias anteriores. A dependência da nicotina foi encontrada em 56% dos participantes.
Alguns outros trabalhos sugerem que até 90% das pessoas que fumam todos os dias desenvolvem algum grau de dependência do cigarro.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que fumar mata 8 milhões de pessoas todos os anos, incluindo 1,3 milhões de mortes que foram expostas ao fumo passivo.
Já um relatório do Centro Colaborativo para Saúde Mental do Reino Unido calcula que 87% da população inglesa com mais de 16 anos consome bebidas alcoólicas.
Estimam que 24% desta população ingere esta substância de uma forma que pode ser classificada como “prejudicial” ou “potencialmente prejudicial” à sua saúde e bem-estar.
Pesquisas estimam que 4% desses indivíduos podem ser considerados dependentes de álcool.
Ó Instituto de Métricas de Saúde da Universidade de Washington, EUA, projeta uma taxa de dependência de álcool de 2,5% entre os brasileiros.
A OMS estima queem todo o mundo, cerca de 2,6 milhões de mortes foram causadas pelo consumo de álcool em 2019.
Vale considerar aqui que o fato de o cigarro e o álcool serem drogas lícitas há muitos anos em diversos países facilita a coleta de dados e a elaboração de estatísticas por parte de instituições e pesquisadores.
No caso da maconha, essas informações sobre a dependência eram um tanto nebulosas — e começaram a se solidificar recentemente, com a descriminalização ou legalização da substância em alguns locais.
O que aumenta o risco de dependência
Silveira explica que o transtorno por uso de cannabis ocorre devido a uma combinação de diversos fatores.
“Um sinal de alerta é o padrão de uso, quando o indivíduo altera a frequência ou a quantidade de consumo. Por exemplo, se começar a fumar todos os dias”, aponta o psiquiatra.
“Claro que se uma pessoa fuma meio cigarro por dia, antes de dormir, isso não é algo que preocupe. Mas se ela já acorda com aquela necessidade incontrolável de acender um baseado, é sinal de problemas”, ele pondera.
Outro comportamento que pode levar ao transtorno envolve um tipo de transição do uso recreativo para o consumo que envolve justificativas de bem-estar ou saúde —sem a devida avaliação de um profissional da área.
“É o caso de uma pessoa que está nervosa, triste, ansiosa e decide fumar maconha como forma de aliviar esses sintomas”, explica o médico.
O psiquiatra destaca ainda dois grupos onde o risco de danos relacionados ao consumo de cannabis é maior.
“Primeiro, os jovens. É absolutamente contraindicado fumar maconha antes dos 21 anos. É a idade em que termina a maturação cerebral”, afirma.
Antes dessa idade, os compostos presentes na planta podem afetar o desenvolvimento dos neurônios e de outras células do sistema nervoso — o que gera repercussões negativas para o resto da vida.
A pesquisadora explica que a maioria dos problemas psicológicos relacionados à cannabis surge em indivíduos que experimentaram essa substância psicoativa desde cedo.
“O segundo grupo inclui pessoas que têm casos de esquizofrenia na família. Neste contexto, o consumo de cannabis pode ser bastante prejudicial”, acrescenta.
Tratamentos disponíveis
Para os casos em que é identificado transtorno por uso de cannabis, Silveira destaca duas possíveis vias de tratamento.
“A primeira é a estratégia de redução progressiva, também conhecida como redução de danos”, afirma.
Essa alternativa envolve reduzir gradativamente a quantidade consumida. Também é possível modificar a rotina do indivíduo — alterando os horários em que ele costuma acender um baseado, por exemplo.
A A Associação Americana de Psiquiatria ressalta que Sessões de psicoterapia podem ajudar nesse processo.
Em alguns casos, os médicos também prescrevem medicamentos com canabinóides, para reduzir gradativamente a necessidade da substância.
“A segunda forma é parar de usar repentinamente e focar o tratamento nos problemas que surgirão posteriormente, como ansiedade ou depressão”, acrescenta o médico.
Por fim, Silveira avalia que a recente decisão do STF pode melhorar a forma como o transtorno por uso de cannabis é tratado no país.
“Estamos 30 anos atrasados neste debate. Enquanto o mundo inteiro discute a legalização da maconha, ainda falamos em descriminalização”, observa.
“O Brasil esteve ao lado do Irã, da China, da Indonésia e de outros países totalitários ao criminalizar o porte de maconha para consumo pessoal”, afirma o médico.
Silveira entende que um cenário de criminalização do porte de maconha para uso pessoal — como o Brasil tinha até poucos dias atrás — cria muitas dificuldades do ponto de vista da saúde pública.
“As pessoas ficam constrangidas em dizer abertamente que usam maconha, por medo de serem rotuladas como criminosas”, argumenta.
“A descriminalização facilita o acesso aos serviços de saúde. E eu, como médico, posso falar abertamente sobre o uso seguro e as formas de prevenção ou tratamento para esses casos de dependência”, finaliza.
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