Por Ângela Vidal Gandra da Silva Martins* — A questão da assistolia fetal, proibida pela resolução do Conselho Federal de Medicina, suscitou muita polêmica não só entre os profissionais da Medicina e do Direito, mas, principalmente, entre os Poderes e a sociedade.
É uma injeção de cloreto de potássio, aplicada no coração da criança, a partir das 22 semanas, quando já está formado, para que pare de bater. Tendo em conta o sofrimento que comprovadamente causa ao nascituro, o referido Conselho emitiu uma resolução contra este cruel procedimento de aborto, que pode ser perfeitamente enquadrado no artigo 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que proíbe a tortura.
Embora a medida seja claramente racional, razoável, ou como diria o professor John Finnis, da Universidade de Oxford, evidente, a campanha mediática visava distorcer dados, apoiando o fim da cadeia de hipersexualização utilitária – isto é, assassinato uterino, e seu lucro econômico e político às custas da mulher, e do bebê, claro! —, cumpriu o seu papel de confundir e desviar a sabedoria e a sensibilidade humanas.
Sobre esse tema, gostaria apenas de fazer algumas breves considerações jurídico-antropológicas. Em primeiro lugar, podemos pensar que estamos a lutar – a que nível! – efeitos, mas não causas. Nesse sentido, teríamos que enfrentar a estimulação sexual precoce — ou não! — descontextualizada e exacerbada, aliada ao baixo nível de escolaridade, que animaliza o ser humano, tornando-o refém de manipuladores económicos ou políticos.
Por outro lado, à medida que se tornar prática, nos acostumaremos a poupar os culpados e punir os inocentes, neste caso, soltando os estupradores e jogando os bebês no lixo. Se esgotarmos o argumento diante da verdade objetiva, despojada de qualquer interesse grupal ou pessoal, vemos que sua defesa é injustificável e insustentável, inclusive proibida no país, até mesmo para animais.
Na verdade, aqui se sabe que o estupro é um álibi utilizado para autorizar o aborto, desprovido de qualquer necessidade de prova. Desde os tempos de estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a manobra foi um triste subterfúgio… Uma mentira existencial que se torna social.
Ao mesmo tempo, dentro da nossa plenitude jurídica, a vida é inviolável nos termos da Constituição; o aborto, considerado crime pelo Código Penal, descriminalizado em dois casos, e o nascituro, protegido pelo Código Civil e por tratados internacionais, que equivalem a emendas constitucionais. Neste sentido, destaco a título de ilustração que nos países onde, infelizmente, vigora a pena de morte, uma mulher grávida não pode sofrê-la por levar consigo o seu filho.
Na verdade, embora não possua personalidade jurídica, por não estar registrada, segundo a filosofia do direito e a antropologia filosófica, um ser individual de natureza racional e relacional é considerado uma pessoa, neste caso, já presente, desde a concepção , juntamente com o código genético, que torna este ser humano único. A sua dignidade inerente, portanto, é pertencer à espécie humana, desde o primeiro momento de vida, ainda que dependente da mãe, condição também da nossa natureza, que nasce, vive e morre, de certa forma, dependente de outros.
De qualquer forma, vemos que o desejo insaciável de usar e abusar do ser humano, sem compreendê-lo a fundo, e, à luz de um pragmatismo inconsequente, acaba por obstruir ainda mais o caminho para a sua própria felicidade — é empírico comprovar a depressão predominante no nosso século —, começando por dissociar o sexo do amor. Nesse contexto, apesar da clareza jurídica e das evidências antropológicas, sociológicas e humanas, como diria Hannah Arendt, por meio da suspensão da resolução do CFM, pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, os bebês continuam sofrendo e sendo descartados. Vidas únicas, que teriam o direito de desempenhar o seu papel no mundo, com liberdade.
Penso que o direito à vida é indiscutível e só é colocado na ordem do dia para protegê-lo ou projetá-lo de forma mais eficaz. Contudo, este debate pertence aos representantes eleitos do povo, num lócus democrático. Nesse sentido, muito trabalho tem sido feito no Congresso Nacional, que, apesar de falsamente acusado, não se calou.
Dessa forma, nem a ADPF 442, onde um partido recorre ao “paternalismo” judicial — imaturidade política —, para solicitar a legalização do aborto, em vez de discuti-lo com seus iguais, nem a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao aborto se justifica. Resolução do CFM, incluindo o PL 1904/24, que aprofunda o tema de forma incisiva, embora, na minha opinião, o estuprador deva ser punido com muito mais intensidade do que a mãe.
No fundo, o que vemos na realidade, apesar da distorção proposital mediática, é que ainda somos capazes de defender a nossa raça, tendo também no coração a nossa tradição, muito bem narrada por João Cabral de Melo Neto, face à “explosão de uma vida”, referindo-se metaforicamente ao momento do nascimento: “é severo, mas é vida!”.
*Angela Vidal Gandra da Silva Martins é professora de filosofia jurídica na Universidade Mackenzie; sócio da Gandra Martins Advocacia; gerente jurídico da Faesp; presidente do Instituto Ives Gandra de Direito, Filosofia e Economia; ex-secretária nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
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