Por João Augusto Gameiro* — A corrupção é um problema global que desafia a integridade das instituições públicas e a confiança dos cidadãos no sistema político. Diferentes países adotam abordagens diferentes para lidar com o problema, refletindo as suas tradições jurídicas e culturais. Se na Antiguidade esta prática era punida com pesadas multas, perda de direitos civis, exílio e, em casos extremos, morte, hoje os países de tradição democrática adoptam penas que, embora severas, se adaptam melhor às garantias do Estado de direito. lei. Hoje, o foco é identificar os limites dentro dos quais a conduta de um agente público deve ser classificada como corrupta.
Considerando que a legislação brasileira tem reproduzido cada vez mais institutos jurídicos de origem norte-americana para combater a corrupção no país — entre eles, a Lei Anticorrupção e modelos de acordos de leniência —, é importante acompanhar os novos entendimentos adotados pelos tribunais dos EUA
No início de julho, o caso Snyder x Estados Unidos foi julgado pela Suprema Corte do país norte-americano envolvendo questões relevantes de corrupção. No centro do caso estava a acusação de que James Snyder, ex-prefeito da pequena cidade de Portage, Indiana, teria aceitado subornos em troca de favores oficiais. Quando Snyder era prefeito em 2013, a cidade concedeu dois contratos a uma empresa de transporte rodoviário, a Great Lakes Peterbilt, e comprou cinco caminhões de lixo da empresa por aproximadamente US$ 1,1 milhão. No ano seguinte, a empresa pagou de forma suspeita a Snyder US$ 13.000.
Durante a investigação, o FBI determinou se a quantia de US$ 13 mil poderia constituir suborno relacionado à compra dos caminhões de lixo. Snyder alegou que o pagamento foi feito por serviços de consultoria prestados como empreiteiro para a Great Lakes Peterbilt. No que seria equivalente no Brasil a um julgamento criminal em primeira instância, o Tribunal Distrital proferiu uma condenação e impôs pena de um ano e nove meses de prisão a Snyder. Na apelação, Snyder argumentou que a lei federal dos EUA só criminalizaria subornos, e não “gratificações”. O Tribunal de Recurso confirmou a condenação.
Snyder, porém, acabou absolvido pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Segundo o tribunal, a legislação federal que criminaliza a corrupção aplica-se apenas aos subornos pagos ou prometidos antes de um ato oficial, e não às chamadas “gratificações” após a ocorrência do fato. Pela redação da lei, o delito seria caracterizado por quem “solicite de forma corrupta, em benefício de qualquer pessoa, qualquer coisa de valor, com o objetivo de ser influenciado ou recompensado por qualquer negócio ou transação” — uma visão, portanto, de recompensa e influência indevida em relação a ocorrências futuras.
A sentença enfatizou ainda a importância de uma abordagem rigorosa para determinar a culpabilidade, exigindo provas claras de que houve um acordo explícito entre as partes envolvidas. A decisão destacou que a mera aceitação de “presentes” ou “benefícios” não seria suficiente para constituir crime de suborno; na verdade, seria necessário demonstrar que houve intenção corrupta de influenciar o desempenho de funções públicas oficiais.
A decisão não foi proferida por unanimidade, mas sim por maioria de 6 a 3. Entre os juízes que votaram de forma diferente, destacou-se que a posição da maioria seria absurda, descontextualizada e inconsistente com as provas colhidas ao longo do julgamento, o que expôs uma verdadeira fraude no processo licitatório conduzido pela Prefeitura de Portage. A decisão dividida repercutiu nos fóruns jurídicos norte-americanos, com discussões acirradas não apenas sobre os acertos e erros das posições, mas também sobre os impactos que o precedente pode ter em casos futuros.
Uma das principais diferenças entre o caso Snyder e a nossa legislação é a abordagem para provar a corrupção. No caso dos EUA, o Supremo Tribunal destacou a necessidade de provas explícitas de uma “troca corrupta”. No Brasil, a definição de corrupção pode ser mais ampla, e a prova de intenção na conduta de corrupção passiva não requer um acordo explícito, mas pode ser inferida a partir das circunstâncias e do comportamento.
O mais importante: apesar dos sérios desafios que o Brasil tem enfrentado no combate à corrupção, a legislação nacional é muito mais rigorosa quando comparada à sua congénere a nível federal norte-americano. Isso porque, no Brasil, um agente público incorrerá em crime de corrupção pelo simples fato de solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem relacionada à sua função, mesmo que isso ocorra antes de assumi-la. Não há, portanto, diferenciação na legislação brasileira quanto ao pagamento da vantagem ou “gratificação” antes ou depois da prática de ato oficial. Na verdade, o fato de um agente público brasileiro efetivamente atrasar ou deixar de praticar um ato oficial, ou mesmo praticá-lo em descumprimento do dever funcional, servirá como causa para o aumento da pena, e não é essencial para a caracterização do a ofensa básica em si. .
Por fim, pode-se identificar mais uma diferença entre as duas legislações no que diz respeito ao tratamento dado ao “brinde”, “gratificação” ou “presente” para o servidor público. A Lei de Conflito de Interesses (Lei nº 12.813/2013) proíbe expressamente que agente público receba presentes de pessoas que possam ter interesse em suas decisões ou de qualquer órgão colegiado do qual faça parte. Além disso, a legislação também impõe um limite financeiro: o valor de um presente não pode ultrapassar o equivalente a 1% do teto salarial vigente no serviço público —valor, portanto, que seria pouco superior a R$ 400. Apesar dos reveses enfrentados nos últimos anos no Brasil, fica claro que a legislação nacional estabeleceu critérios muito mais rígidos tanto para prevenir a ocorrência de condutas corruptas como para sancioná-las.
O que fica claro na decisão do julgamento de Snyder, no entanto, é que o governo dos Estados Unidos, em casos que envolvam suborno de funcionários públicos, terá agora de trabalhar mais arduamente para reunir provas convincentes que estabeleçam a existência do chamado acordo corrupto através do qual foi oferecida uma vantagem ao agente público antes de qualquer ação oficial ser tomada. Neste sentido, existe a percepção de que as autoridades criminais do país começarão a utilizar de forma mais intensa acordos de colaboração para reunir provas suficientemente robustas para obter condenações perante os tribunais. Por sua vez, isso pode influenciar casos de impacto transnacional envolvendo a aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA), como ocorreu no passado com empresas com operações no Brasil.
*João é sócio da área criminosa de Trench Rossi Watanabe
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