Em sua última sessão como ministro convocado à Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o juiz federal Carlos Fernando Mathias de Souza encerrou o processo com uma mensagem contundente. “É bom sermos latinos, porque temos uma palavra linda para nos despedir: adeus, as cinco letras que choram”, disse.
Na 2ª Seção, emocionou-se com as homenagens dos ministros, falou sobre momentos vividos com cada colega e concluiu seu discurso citando um trecho do poema Cântico Negro do português José Régio: “Não sei onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou para lá!”
Era 2009. Carlos Mathias deixou o serviço público porque tinha 70 anos e a idade impunha a reforma compulsória —só em 2015, o período para permanecer ativo foi alargado para 75 anos. Aposentou-se da toga, mas ainda viveu 15 anos de sua paixão: a advocacia.
Após deixar o Judiciário, retornou à advocacia e manteve até 2021 a organização de edições do Seminário Internacional Ítalo-Ibero-Brasileiro de Estudos Jurídicos, um dos eventos destinados aos mais tradicionais juristas da capital. Combinando-o com o que o precedeu, o Seminário Roma-Brasília, foram 36 anos de coordenação de debates jurídicos.
O último, em setembro de 2021, no STJ, tratou de um tema bastante atual: “Relações jurídicas na realidade digital”. Alguns dos palestrantes eram conhecidos de Carlos Mathias desde a infância. Outros se tornaram amigos ao longo de sua carreira.
Durante o seminário, o jurista Carlos Bastide Horbach, então ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), definiu Carlos Mathias como o “dínamo da cultura jurídica”. Ele era culto, gentil e ativo em eventos comunitários jurídicos. Conseguiu reunir ministros, advogados e outros membros do mundo jurídico quando esses debates ainda eram raros em Brasília. Construiu assim uma longa trajetória de vida no sistema de justiça.
No dia 8 de maio, Carlos Mathias partiu, aos 85 anos, devido a um câncer. Deixou duas filhas, Ana Luiza e Fernanda, um neto, Henrique, a esposa, Maria Luiza, com quem foi casado por quase 50 anos, e uma legião de admiradores. Com uma carreira no mundo jurídico iniciada no início da década de 1960, Carlos Mathias exerceu a advocacia antes de chegar à magistratura. Foi procurador do Distrito Federal, tendo alcançado o posto de vice-procurador-geral.
Também foi presidente do Conselho Autoral Nacional e do Conselho de Educação do Distrito Federal. Teve também uma curta passagem pelo Ministério Público da Bahia, como procurador. Também atuou como diretor da Fundação Cultural do Distrito Federal, quando deixou como um de seus legados a conclusão das obras do Teatro Nacional, em 1979, conforme explica o ex-governador José Roberto Arruda, que na época era diretor do Teatro Nacional. Prédios da Novacap, no governo de Aimé Lamaison.
A professora Eurides Brito foi Secretária de Educação e Cultura e aí começou uma amizade de décadas. Ainda sob a gestão de Carlos Mathias, na Fundação Cultural, foi inaugurada em 24 de julho de 1981 a sede da Secretaria de Cultura, que funciona no anexo do Teatro Nacional.
No judiciário, Carlos Mathias integrou o plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF) como juiz eleitoral e posteriormente, indicado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi nomeado do então presidente Fernando Henrique Cardoso para uma vaga de quinto constitucional no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).
A posse ocorreu em 17 de fevereiro de 1995. De 2002 a 2004, foi vice-presidente do Tribunal. Em seguida, assumiu a direção da Escola Judiciária Federal da 1ª Região no biênio 2004-2006. De 2005 a 2006, também foi diretor da Revista TRF1.
Um dos marcos de sua passagem pelo TRF1 foi a decisão histórica que assinou, em 2001, sobre a possibilidade de afastamento de servidores solteiros em casos de adoção de crianças. A decisão consta na página da memória institucional do TRF1. Com base no voto de Carlos Mathias, o TRF1 considerou que, no caso de um único funcionário que optar pela adoção solitária, seu papel na relação com a criança será o de pai e mãe simultaneamente. Portanto, a adoção realizada exclusivamente por um homem não diminui a necessidade de adaptação da criança ao novo lar.
Assim, prevaleceu o entendimento de que o artigo 210 da Lei 8.112/1990 — que estabelece licença de 90 dias nos casos de adoção — deve ser interpretado como uma norma jurídica que visa proteger a criança, e não como um benefício ao servidor.
A partir de 2007, o magistrado foi convocado para trabalhar no STJ. Ele foi o primeiro juiz federal a ocupar esse cargo. Ele inicialmente compôs a Sexta Classe. Transferiu-se então para a Segunda Turma e deixou o Tribunal, dois anos depois, como membro da Quarta Turma, tendo passado por todas as seções do STJ. Atuou em questões de direito público, penal e privado no tribunal que forma a jurisprudência do país.
Como parte das homenagens que recebeu ao se aposentar em 2009, ouviu do ministro João Otávio Noronha um elogio à sua trajetória no STJ: “Vossa Excelência nos deixa em termos de trabalho, mas não em termos de memória”. O ministro Fernando Gonçalves, então reitor, destacou a contribuição que a experiência do magistrado proporcionou ao STJ. Os dois eram grandes amigos. Carlos Mathias, aliás, tinha admiradores no Judiciário, no Direito e entre os estudantes que cursavam as disciplinas que ele ministrava.
Ele nunca se separou da comunidade acadêmica. Foi professor do mestrado em direito da Universidade Federal de Goiás, do curso de direito da Universidade de Brasília (UnB), e lecionou nas faculdades de Serviço Social do DF, de Educação, do Instituto de Ciências Humanas. Ciências da UnB e no Centro Universitário de Brasília (Ceub).
Ao falar sobre o legado do magistrado, a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, destacou o respeito que Carlos Mathias tinha entre seus colegas do Judiciário. “Convivi com Mathias nas sessões de julgamento da Sexta Turma e nos diversos eventos por ele organizados. Além de ser muito querido por todos, foi referência em temas importantes para o Judiciário, legado que se multiplica às centenas de alunos que puderam compartilhar seu conhecimento é sem dúvida uma perda inestimável para o mundo jurídico”, afirmou.
Nascido em 25 de março de 1939, no Rio de Janeiro, Carlos Mathias formou-se em ciências sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual UFRJ, em 1961. Sobre sua carreira acadêmico de formação, especializado em diversas áreas do direito, como direito autoral, pela Universidade Federal de Goiás.
Apaixonado pelo debate jurídico, Carlos Mathias foi importante colaborador da seção Direito&Justiça do Correio Braziliense, na época em que era editada pelo professor Josemar Dantas. Seu vasto currículo inclui ainda ter pertencido à Academia Brasiliense de Letras (ABL), à Academia de Letras e Música do Brasil (Almub), ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (IHGDF) e à Associação Nacional de Escritores (ANE).
O presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, acredita que Carlos Mathias tem contribuído para o sistema judiciário brasileiro tanto por meio de sua atuação como juiz quanto por meio de seu trabalho acadêmico. “Que a sua memória e legado permaneçam como inspiração para as gerações futuras”, disse ele.
Você gostou do artigo? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê sua opinião! O Correio tem espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores através do e-mail sredat.df@dabr.com.br