O debate sobre a legislação fundiária para estrangeiros ganhou força devido à disputa em torno da Eldorado Celulose. Em um negócio que envolve R$ 15 bilhões, J&F e CA Investment SA (controlada pela estrangeira Paper Excellence) brigam na Justiça pelo controle da Eldorado. Entre os pontos levantados contra o acordo estão os questionamentos: empresas estrangeiras podem adquirir terras no Brasil? Que efeitos o caso poderá ter na economia nacional?
Professor titular de direito econômico e economia política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores referências do país em questões de soberania, Gilberto Bercovici vê o debate com preocupação. “Se prevalecer o novo entendimento do Ministério Público Federal e do Incra neste caso, o agronegócio no Brasil estará acabado”, afirma.
Segundo Bercovici, é fundamental procurar soluções que conciliem os princípios constitucionais e as preocupações jurídicas, protegendo a soberania nacional, mas sem comprometer a necessidade de atrair e manter investimentos estrangeiros no país. E sem agravar a insegurança jurídica, com mudança de interpretação de algo já consolidado desde a década de 1970.
Em que casos podemos falar de risco para a soberania nacional com a compra de terrenos por estrangeiros? O que deve ser levado em conta ao identificar uma ameaça à soberania?
Podemos dizer que existem dois tipos de ameaça à soberania nacional. A primeira é quando grandes extensões de terra são propriedade estrangeira, o que pode levar à desnacionalização ou à desagregação territorial. Afinal, a soberania está diretamente relacionada com o domínio territorial. A segunda ameaça é a existência de projectos de exploração da terra que distorcem princípios constitucionais, como a função social da propriedade, por exemplo. É uma forma de garantir que a atividade económica que será desenvolvida naquela propriedade esteja em conformidade com os nossos princípios constitucionais. É por isso que as limitações são aplicáveis a grandes extensões de terra, que são os casos em que pode haver alguma ameaça à soberania. É importante destacar também que áreas estratégicas, como a preservação ambiental, as fronteiras ou aquelas ricas em recursos minerais, exigem um olhar mais atento das autoridades para não comprometer a nossa soberania. Note-se que se trata de casos excepcionais, a regra é incentivar o investimento estrangeiro que esteja de acordo com os nossos princípios constitucionais para promover o desenvolvimento económico e o bem-estar social.
A disputa pela Eldorado Celulose, que opõe J&F e a multinacional Paper Excellence, é um exemplo de ameaça à soberania?
Não é difícil responder a esta questão, basta verificar se existe ofensa aos princípios constitucionais e à legislação que referimos. É um projeto em área de fronteira, de preservação ambiental ou estratégico para o país? O estrangeiro tem controle sobre a Eldorado Celulose? O empreendimento envolve a aquisição de terrenos com a finalidade de controlar grande parcela de terreno? O projeto não cumpre a função social da propriedade prevista na Constituição? Para todas essas perguntas, a resposta é não. A conclusão imediata é que este não é um problema que represente um risco para a soberania nacional. Existem vários exemplos semelhantes de empresas estrangeiras operando no Brasil nessas condições e não há notícias de qualquer questionamento baseado no risco à soberania. A operação de venda da Eldorado não visa adquirir ou arrendar terras rurais, mas é a transferência de controle de um complexo industrial que não foi concretizada porque o negócio foi paralisado judicialmente. Neste caso, o investidor estrangeiro adquiriu uma fábrica de celulose, cuja atividade fim não depende da aquisição de propriedades rurais, e comprometeu-se como condição pactuada a não manter a propriedade da terra, pois o foco é a compra de madeira, a matéria-prima material para produção de celulose. Sejamos razoáveis, não há provas de que a transação constitua uma ameaça à soberania nacional.
Que lacunas legais ou interpretações de leis poderiam dificultar negócios envolvendo terras no Brasil?
Na verdade, o mais adequado seria que o Congresso Nacional aprovasse uma nova regulamentação para atualizar a Lei nº 5.709/71, preencher suas lacunas em relação à aquisição do controle acionário de empresas brasileiras, tornar o texto mais claro e mais executório, sanar dúvidas sobre as limitações à aquisição de terras por estrangeiros. O problema é que os projetos que tramitam no Congresso são muito amplos, abrem demais as possibilidades de aquisição e podem até violar a Constituição. Portanto, o ideal é um projeto mais equilibrado e que especifique as condições para compra de terrenos por estrangeiros, prevendo etapas, prazos, limites, etc. Um projeto que considere a atual fluidez de capital, inclusive. Ou seja, qualquer alteração legislativa necessita de garantir a soberania, o respeito pelos princípios constitucionais relacionados com a ordem económica e, ao mesmo tempo, estimular o desenvolvimento de projectos económicos benéficos ao país, o que envolve também o papel do investimento estrangeiro.
No caso Eldorado Celulose, o Ministério Público Federal e o Incra declararam a nulidade do negócio. Você concorda com essas manifestações?
As manifestações do MPF e do Incra pela nulidade do acordo baseiam-se em uma interpretação equivocada da lei, pois consideram que qualquer participação estrangeira em projetos envolvendo terras no Brasil deveria implicar nulidade sem solicitar autorização do Congresso Nacional. O problema é que se prevalecer o novo entendimento do MPF e do Incra não haverá mais agronegócio no país. Os sectores mineiro e energético, especialmente a energia eólica, seriam fortemente afectados, porque são actividades económicas desenvolvidas em grandes extensões de terra e com a presença de capital estrangeiro. Vamos agora exigir autorização prévia do Congresso para todo e qualquer projeto que envolva terras e tenha participação estrangeira? E a participação indireta, via fundos de investimento, etc.? É isso mesmo que o MPF e o Incra querem? Porque o que está assinado no caso Eldorado Celulose valerá para todas as demais empresas estrangeiras ou brasileiras que tenham capital aberto em bolsa, podendo ter capital de fora do Brasil no negócio.
Pensando na importância dos investimentos estrangeiros para o desenvolvimento do Brasil, que soluções você vê para que o caso Eldorado Celulose seja superado da forma mais positiva possível?
Tenho defendido, em vez da nulidade, a adopção de parcerias rurais. Isso porque nessa modalidade o imóvel permanece com os brasileiros. Ou seja, o empreendimento é comum, com assunção de riscos e resultados compartilhados entre o proprietário brasileiro e o investidor estrangeiro. É definido um prazo razoável e os contratos de arrendamento rural passam a ser contratos de parceria rural. Os arrendamentos também são regidos pelas mesmas restrições às aquisições por estrangeiros que a aquisição pura e simples, mas as parcerias rurais não o são. Fundamentalmente, porque a propriedade permanece com os brasileiros. É uma solução relativamente simples, ágil, sem grandes custos jurídicos para o Estado e que não ameaça a segurança jurídica nem os projetos de desenvolvimento existentes. Com a parceria rural preservamos o interesse público e a soberania territorial. É uma solução que resolve o caso da Eldorado Celulose e pode servir de referência para outros casos, pois beneficia todas as partes envolvidas.
Você gostou do artigo? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê sua opinião! O Correio tem espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores através do e-mail sredat.df@dabr.com.br