A história de Carlos Edmilson da Silva, o negro da periferia que passou 12 anos preso como estuprador em série na região de Barueri e Osasco, região metropolitana de São Paulo, é outro dos casos de sucesso do Projeto Inocência Brasil, um entidade dirigida por três criminalistas que trabalham pro bono para reverter erros do Judiciário. São eles: Flávia Rahal, Dora Cavalcanti e Rafael Tucherman.
Fundada em 2017, a organização recebe informações sobre casos em que condenações injustas são denunciadas em cartas e solicitações por meio do site. Mas o Projeto Inocência só intervém quando detecta provas contundentes de inocência. Foi o caso de Carlos Edmilson, condenado a mais de 137 anos pelo estupro de 12 mulheres e absolvido na semana passada, por unanimidade, pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Responsável pelo caso, a advogada criminal Flávia Rahal, uma das fundadoras do Innocence Project Brasil, explica que muitos reconhecimentos de suspeitos têm sido realizados em delegacias ou mesmo em juízo de forma informal, direcionada e sem respeitar os critérios mínimos exigidos no artigo 226.º do Código de Processo Penal. Esse método leva a muitos erros, segundo o advogado. Innocence atuou em pelo menos sete casos bem-sucedidos em que pessoas inocentes foram condenadas com base em falhas de reconhecimento ou denúncias falsas.
Como funciona o Projeto Inocência Brasil? Como isso apareceu no país?
Nosso projeto nasceu em 2017 no Brasil. Faz parte de uma rede de projetos que existe em todo o mundo, a Innocence Network, e dentro dela temos a possibilidade de aceder a know-how, trocar ideias e experiências, mas são projetos que avançam de forma autónoma. Nosso objetivo é reverter condenações injustas, provar a inocência de pessoas inocentes que foram presas e condenadas e, através dessas reversões, tentar lançar luz sobre a necessidade de melhorar o sistema de justiça criminal, porque ao analisar casos de erro, você começa a identifique com mais clareza quais causas levaram ao erro e, a médio e longo prazo, você poderá trabalhar para melhorar essas causas, melhorar e evitar que continuem sendo causas de erro.
Como são escolhidas as pessoas que você representa?
No site do projeto há uma área para que as pessoas que precisam de ajuda ou que conhecem alguém que precisa de ajuda possam preencher um questionário, explicando qual é a situação, em que caso houve uma condenação e quais provas imaginam ser novas para elas. provar a inocência do condenado. Esse é o caminho mais utilizado por familiares de presos, mães, pais, irmãos, esposas, maridos ou, às vezes, amigos e ex-namorados. Em suma, pessoas relacionadas com alguém que está preso, que depois vêm pedir ajuda para o projeto. E às vezes recebemos cartas manuscritas de pessoas que estão na prisão.
Quais são os critérios para abraçar uma causa?
Temos vários critérios objetivos e o mais importante deles é que deve ser um caso já transitado em julgado, com condenação definitiva. Os casos selecionados são analisados com muita profundidade, com muito cuidado e atenção. Fazemos uma análise de todo o caso que é muito detalhada, muito cuidada e por isso demorada. Vemos qual é a possibilidade de produzir novas provas e fazemos um trabalho investigativo sólido. Quando a prova é obtida, com forte indicação de que o caso é de inocência, neste ponto o caso torna-se oficialmente um caso de projeto. Para nós é muito importante que este trabalho preliminar seja verdadeiramente exaustivo e muito cuidadoso, pois só processamos um caso em nome do Innocence Project Brasil quando estamos convencidos da inocência de nosso cliente e de evidências materiais que apoiam firmemente essa inocência .
Esses erros afetam mais os negros?
Certeza absoluta. Raça e cor são características que aparecem como elementos importantes no reconhecimento. Existem estudos que apoiam isso. Há também análises que afirmam que as pessoas têm mais facilidade em reconhecer quem é da sua raça; Isto é o que se chama de “efeito inter-racial”. Existe também, muitas vezes, um preconceito racial na forma como a investigação é conduzida. Não tenho dúvidas sobre isso. E o reconhecimento reafirma frequentemente este preconceito racial e racismo estrutural.
Como você chegou ao caso Carlos Edmillson?
Quem me pediu para ver esse caso foi um promotor, Dr. Eduardo Querubim.
Ele mesmo identificou que pode haver uma falha?
Exatamente e foi iniciativa dele nos pedir a revisão do caso. E ele nos ajudou em todo o processo. Também contamos com a ajuda da Dra. Daniela Fávaro.
Como será a vida de Carlos Edmilson daqui para frente? Existe algum tipo de reparo?
Ele está, neste momento, tentando recuperar a vida, porque não é difícil imaginar que uma pessoa que ficou presa por 12 anos não saia da mesma pessoa que entrou no sistema prisional, nem volte para a mesma sociedade que ele foi embora. Somos diferentes do que éramos há 12 anos, a família dele é diferente. Então, ele está tentando aceitar todas essas notícias. Acho que a energia e a mente dele, neste momento, estão nesta reconstrução da sua vida. O projeto não atua diretamente em ações indenizatórias, mas entende e reconhece que esse é um caminho que deve ser trilhado por quem foi vítima de algum erro.
O que aconteceu neste caso? Você acredita que uma vítima foi influenciada pela outra?
A grande maioria dos reconhecimentos começa com uma única fotografia, pelo que já houve uma indução ao seu reconhecimento como autor de violação, mas, mais do que isso, o facto de ter sido reconhecido num caso levou-o a ser reconhecido no seguinte. como aquele estuprador, pois foram estupros ocorridos na mesma região de São Paulo, de forma semelhante, tudo indicando que se tratava do mesmo homem. E ele estava sendo apresentado como aquele homem, como aquele estuprador em série, então um reconhecimento reforçava o outro reconhecimento e uma convicção reforçava a outra condenação.
E a prova significativa para reverter a condenação foi o teste de DNA?
A única prova para condenar foram as palavras da vítima. Ninguém apresentou qualquer outra prova, nada. E identificamos que, em cinco desses dez casos, havia material genético das vítimas e não foi feita a comparação genética; O teste de DNA não foi realizado. Foi então que conseguimos, com a ajuda do Dr. Eduardo Querubim, que o Instituto de Criminalística de São Paulo, produzisse os cinco exames de DNA e todos comprovaram que não havia compatibilidade com o perfil genético de Carlos Edmilson. Ele era inocente desses estupros.
As acusações foram uma correria do Ministério Público? Onde está o grande erro da Justiça?
Normalmente, os erros são gerados por uma sucessão de falhas. Via de regra, não se pode dizer que uma condenação injusta é fruto de um único erro ou apontar o dedo dizendo que quem cometeu o erro foi uma instituição específica. E neste caso a situação é exatamente essa. Houve uma sucessão de erros.
E com tantos erros que identificamos, a pena de morte seria um risco muito grande no Brasil?
Se sempre, historicamente, desde que me reconheci como profissional do direito, fui radicalmente contra a pena de morte, acho que o projeto está aí para mostrar o quão tolo é pensar em um tipo de punição dessa natureza. É absolutamente inimaginável que tenhamos algo assim aqui no Brasil e, na minha opinião, em qualquer lugar do mundo.
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