Por Leonardo Roesler*
A recente aprovação do PLP 68/2024 pela Câmara dos Deputados, que regulamenta os aspectos fundamentais da reforma tributária, simboliza um avanço significativo na tentativa de modernização do sistema tributário brasileiro. Contudo, o texto final aprovado e o processo legislativo que o apoiou revelam uma complexidade que vai além da mera simplificação fiscal. As decisões tomadas têm implicações profundas para as empresas, os cidadãos e a economia como um todo, reflectindo também os desafios inerentes a um país com disparidades regionais e sectoriais tão acentuadas. A análise do texto final exige atenção ao seu impacto conceitual e prático, bem como uma crítica aos rumos adotados para o redesenho da estrutura tributária nacional.
O modelo de tributação instituído pela reforma centra-se na criação de um duplo Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), destinado a estados e municípios. Esses dois tributos, que substituirão o ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins, apresentam-se como instrumentos de simplificação e padronização da arrecadação.
O objetivo central é mitigar as distorções causadas pela multiplicidade de impostos, regimes cumulativos e guerra fiscal que caracterizam o sistema atual. Embora a proposta represente um avanço em termos de racionalidade e eficiência tributária, ela também traz consigo uma série de desafios técnicos e operacionais.
Um dos aspectos mais discutidos é a definição de uma alíquota geral de aproximadamente 27,8%, resultado de ajustes feitos pela Câmara para reduzir os 28,5% projetados após mudanças no Senado. Ainda assim, esse percentual coloca o Brasil entre os países com maior carga tributária sobre o consumo.
Embora tecnicamente justificável para manter as receitas em níveis adequados, esta taxa impõe uma pressão significativa às empresas, especialmente aquelas que dependem de elevada competitividade no mercado global. A elevada carga pode desencorajar os investimentos produtivos, afectando a criação de emprego e o crescimento económico. Além disso, os setores que atuam em mercados internos mais sensíveis aos preços poderão enfrentar dificuldades em absorver custos adicionais, transferindo-os para o consumidor final.
Para os cidadãos, o impacto da reforma fiscal não será homogéneo. O consumo, principal objeto da tributação, tende a ser mais oneroso para os grupos de menor renda, que dedicam a maior parte dos seus recursos à aquisição de bens essenciais. Neste contexto, o mecanismo de cashback incluído no texto, que visa devolver parte dos impostos às populações vulneráveis, é um elemento positivo, mas não suficiente para resolver a regressividade intrínseca do modelo. A implementação eficiente deste instrumento dependerá de regulamentações detalhadas, sistemas administrativos robustos e da capacidade operacional dos entes federais.
Outro ponto que merece destaque é a manutenção de regimes diferenciados para setores específicos, como a Zona Franca de Manaus. A concessão de benefícios fiscais à indústria de refino de petróleo na região gerou intensas críticas de entidades como o Comsefaz, que alertou para os riscos à competitividade das refinarias instaladas em outros pontos do país e para a possível perda de receita anual estimada entre R$ US$ 1,7 bilhão e R$ 3,5 bilhões.
Esta decisão exemplifica a dificuldade de alinhar interesses regionais e sectoriais num projecto que visa unificar e simplificar o sistema fiscal. A crítica é ainda mais acentuada dada a perspectiva de que tais benefícios perpetuem desigualdades entre regiões e empresas.
No plano legislativo, o processo de aprovação do PLP 68/2024 foi marcado por intensas negociações e decisões políticas que refletem a necessidade de conciliar interesses divergentes. A rejeição, pela Câmara, de mudanças propostas pelo Senado, como a inclusão do saneamento básico em regimes de tarifas reduzidas, revela a preocupação em evitar impactos negativos na tarifa geral. Por outro lado, a aprovação de medidas dirigidas a setores estratégicos, como energia e saúde, evidencia a tentativa de ajustar o modelo a demandas específicas sem comprometer as receitas.
Aguardando-se a sanção presidencial, a implementação prática da reforma apresenta-se como um dos maiores desafios. O cronograma, que começa em 2026 e se estende até 2033, prevê uma transição gradual para o novo sistema, com taxas de testes e ajustes progressivos. Este período será crucial para identificar falhas, corrigir distorções e garantir que as empresas e os cidadãos conseguem adaptar-se às novas regras. Uma transição bem-sucedida exigirá esforços conjuntos dos governos federal, estaduais e municipais, além de diálogo constante com o setor produtivo e a sociedade civil.
Embora o texto aprovado represente avanços, não está isento de críticas e ajustes futuros. Calibrar a taxa geral, expandir mecanismos para mitigar impactos regressivos e eliminar privilégios fiscais injustificáveis serão desafios constantes. Além disso, será essencial garantir que os instrumentos de simplificação, como a uniformização das regras e a redução das obrigações acessórias, sejam efetivamente implementados, a fim de cumprir o objetivo de modernização do sistema fiscal.
A reforma tributária simboliza uma oportunidade única para reposicionar o Brasil em termos de competitividade fiscal e justiça tributária. Contudo, a sua consolidação depende não só da sua execução técnica, mas também de uma visão política capaz de ajustar o modelo às necessidades económicas e sociais do país. Este é um projeto que inaugura uma nova era no debate tributário brasileiro, mas cujo sucesso só será confirmado com sua implementação prática e resultados reais.
Escritório Jurídico
STF adia decisão sobre responsabilização de redes por conteúdo. Quais são as possíveis implicações?
A questão da responsabilização das plataformas digitais dividiu corações e mentes. É realmente um assunto difícil, porque, por um lado, o advento da internet, especialmente depois das redes sociais, mostrou os danos muito reais, que por vezes as notícias, nomeadamente as notícias falsas, causam danos que, se não forem removidos rapidamente, podem tornar-se irreparável. Por outro lado, se houver também uma responsabilização objetiva das redes, como se pretende que seja feito de acordo com o voto do relator Toffoli. Na posição defendida pelo ministro, corremos também o risco de apertar ainda mais um valor tão importante como o direito de expressão.
Todos sabemos que o direito à expressão não é um valor absoluto, sempre foi assim, só se tornou mais evidente nas últimas décadas e nos últimos anos, especialmente com o fenómeno da internet e das redes sociais. Mas temo que se não houver um reflexo muito bom no julgamento dos ministros que estão votando no Supremo Tribunal Federal, corremos o risco de limitar essa liberdade tão importante de forma talvez irreversível. Observemos o pedido de revisão que o ministro André Mendonça fez e o que ele irá considerar, isso certamente virá antes do início de fevereiro.
*Advogado especialista em direito tributário na RMS Advogados
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