Catarina, uma jovem de 18 anos, iniciou um relacionamento afetivo com um homem que conheceu num bar. Juan, seu namorado, se apresentou como especialista em investimentos financeiros e a convenceu a fazer investimentos dessa natureza. Aproveitando a relação de confiança, Juan apropriou-se do cartão bancário de Catarina. Então Juan a convenceu a lhe dar um empréstimo. Juan também tentou fazer com que Catarina pedisse dinheiro emprestado e usasse o cartão de crédito dos pais, dizendo que ela não deveria falar sobre os supostos investimentos com nenhum familiar. Sempre que era cobrado pelos valores devidos, irritava-se e pressionava a vítima dizendo “você não confia em mim”.
O caso faz parte de pesquisa inédita no Brasil, realizada por membros do Ministério Público, que destacou as principais características de um golpe que atinge não só o bolso, mas também a autoconfiança e causa violência psicológica em mulheres: a fraude sentimental. Também é chamado de “golpe de Don Juan”. Ocorre quando a vítima, envolvida emocionalmente com seu algoz, acaba entregando bens, dinheiro e parte de seus bens, acreditando na reciprocidade do sentimento.
O crime é descrito como a conduta de um homem que se aproxima de uma mulher e, abusando da expectativa dela de iniciar ou dar continuidade a um romance, passa a imagem de ser um parceiro ideal ou um bom administrador de riquezas. Ele ganha assim a confiança da vítima, e então passa a aplicar uma série de estratégias para obter vantagens financeiras.
O estudo O Golpe de Don Juan: análise das respostas da fenomenologia e da justiça à fraude sentimentalrealizada pelo procurador Thiago Pierobom de Ávila, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), e pelo assessor jurídico Gabriel Santana Granja, da Procuradoria-Geral da República (PGR), destacou características das vítimas, dos golpes e do dificuldades enfrentadas pelas mulheres na obtenção de justiça.
Ao analisar 39 casos registrados no Distrito Federal, entre 2019 e 2020, Pierobom e Santana chegaram à conclusão de que existe um perfil específico de vítimas: brancas (53,8%), de meia-idade (a maioria entre 25 e 44 anos), moradores de bairros de classe média alta ou alta (61,9%) e com renda econômica superior a três salários mínimos (59%). Entre os criminosos, 38,5% tiveram outras ocorrências policiais.
Em 35,9% o relacionamento era de até seis meses. Ao contrário do que muitos podem pensar, em apenas 5,1% o golpe foi realizado inteiramente pela internet. Mas um em cada cinco casos (20,5%) começou nas redes sociais. O estudo constatou que existem principalmente três tipos de fraude: indução à entrega de mercadorias (48,7%), gestão abusiva de bens (66,7%) e falsificações (23,1%).
As estratégias utilizadas para convencer as mulheres a liberar dinheiro ou senhas bancárias foram o abuso do relacionamento afetivo (41%), a identidade falsa (35,9%), a imposição de medo/intimidação (35,9%), a simulação de emergência (30,7%) , exigência de cuidado (25,6%) e falsa oportunidade (15,4%).
O valor dos golpes analisados totalizou R$ 2,7 milhões. A faixa de valor do golpe mais comum foi de R$ 15 mil a R$ 20 mil (em 15,4% dos casos), o golpe médio foi de R$ 70 mil. Em 7,7%, o prejuízo foi superior a R$ 250 mil e o maior prejuízo foi de R$ 792 mil. Neste episódio, o golpista teria transferido para si de forma fraudulenta a maioria das ações da sociedade empresária da qual a vítima fazia parte.
Em 23,1% a Lei Maria da Penha não foi aplicada. Houve pouca proteção pessoal (33,3%) ou patrimonial (7,7%). Em apenas 23,1% houve queixa formal ao Tribunal e, apenas em 10,3%, houve condenação com pena média de um ano e meio.
Os golpes envolvem questões como empréstimo de dinheiro, recebimento abusivo de presentes, apropriação de valores a serem utilizados em pagamentos, acesso a senhas de cartões bancários, outorga de procurações para administração de bens, além de falsificação de assinaturas para utilização de cheques e documentos.
Para aplicação dos golpes foram utilizadas diferentes estratégias de engano, como falsos relacionamentos afetivos, e em 35,9% dos casos foi utilizada identidade falsa, como usar outro nome, mentir sobre a profissão (alegando servidor público, policial ou empresário) ou nacionalidade. Segue-se o abuso de dependência emocional (41,0%), correspondendo aos casos em que o agressor condicionou a exigência de benefícios à confirmação de amor pela vítima.
As histórias se repetem. Geralmente havia expressões como “eu te amo muito”, “vamos viver juntos para sempre”, “amor, confie em mim”, “precisamos disso para termos uma vida juntos”, “você é a mulher da minha vida”. Segundo os autores do estudo: “Trata-se de sedução para vencer resistências e realizar fraudes”.
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Um dado chama a atenção: 23% das vítimas eram profissionais de saúde (enfermeiros, psicólogos, técnicos de enfermagem, biólogo, fonoaudiólogo, veterinário). “Essa prevalência significativa permite levantar a hipótese de que, devido à alta demanda profissional decorrente da pandemia, as profissionais de saúde sofreram desgaste emocional significativo, resultando em maior vulnerabilidade a golpes praticados no contexto das relações afetivas”, afirmam os autores do estudo.
Na tentativa de facilitar a punição desse tipo de agressores, o Projeto de Lei 2.254/2022 tramita no Senado, com o objetivo de criminalizar especificamente a conduta. O texto, apresentado na Câmara, pelo deputado federal Marcelo Belinati (PP-PR), altera o Código Penal para incluir no artigo 171, que trata do peculato, aumento da pena, caso a vítima do crime contraia alguma dívida, voluntária ou involuntariamente, em consequência do crime e vender bens ou retirar qualquer tipo de investimento financeiro para que o crime seja consumado”.
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