Vítimas de violência, feminicídio ou outros tipos de agressão, as mulheres muitas vezes são mais julgadas do que seus algozes. Vestuário, comportamento, número de parceiros, relações pessoais, cuidados com os filhos, hábitos… tudo entra em jogo quando são vítimas.
Não é incomum que essas mães, profissionais, filhas, irmãs, amigas sejam mortas duas vezes. Um assassinato do corpo e outro da sua história.
Em maio, uma importante decisão unânime do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) avançou na proteção da biografia dessas mulheres. Os ministros concluíram que é inconstitucional a prática de questionar a vida ou hábitos sexuais da vítima na investigação e julgamento de crimes de violência contra a mulher. Caso os advogados insistam nessa conduta, o processo deverá ser anulado. O STF destacou que esse tipo de defesa do réu ou investigado perpetua a violência de gênero e vitimiza duplamente as mulheres.
O juiz que permitir tal postura poderá ser responsabilizado administrativa e criminalmente. A pena também não pode levar em conta o passado sexual da vítima na determinação da pena do agressor ou do feminicídio. O entendimento foi estabelecido na Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) 1.107 proposta pela Procuradoria-Geral da República na qual foi discutida a prática de desqualificação de vítimas do sexo feminino. Levou-se em conta que é comum que, nestes processos, arguidos, advogados, polícias, testemunhas, membros do Ministério Público e juízes façam perguntas ou ponderem sobre o comportamento e estilo de vida da vítima.
Segundo o STF, durante a investigação ou na Justiça surgem questões como o tipo de roupa que a mulher usava, se consumia bebida alcoólica, se era virgem ou com quem se relacionava. Segundo a ação, essa prática configura discriminação contra a mulher, pois tenta justificar o crime com base no comportamento da vítima e implica que a própria mulher foi a culpada pela violência sofrida. A PGR pediu então ao STF a proibição dessa prática.
Nada mais emblemático do que a relatora do caso ser a única mulher no plenário do STF, a ministra Cármen Lúcia. A juíza destacou que, apesar dos avanços na legislação brasileira em relação às mulheres, esses comportamentos ainda são reproduzidos na sociedade.
Em março de 2021, o plenário do STF já havia decidido, também por unanimidade, que a tese da “legítima defesa da honra” viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção da vida e da igualdade de gênero. Portanto, este argumento não pode ser utilizado em nenhuma fase do processo penal ou durante o julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade.
O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, destacou que o Supremo tem dado a contribuição possível “para enfrentar uma sociedade patriarcal e um machismo estrutural, que se manifesta na linguagem, nas atitudes e nas diferenças do mercado de trabalho”.
Ao julgar o recente caso sobre a vida pregressa da vítima, o ministro Alexandre de Moraes destacou: “É lamentável que, no final do primeiro quartel do século 21, ainda tenhamos esse machismo estrutural, inclusive nas audiências perante o Judiciário”. O juiz acrescentou: “E não há possibilidade de tratar isso com meias medidas. É importante que o Supremo Tribunal Federal demonstre que não vai mais tolerar isso”.
Mesmo que o crime de legítima defesa da honra não seja aceito há décadas, muitos jurados ainda ficam impressionados quando os advogados dos réus apresentam dados relacionados à vida da vítima. Há relatos de redução de penas em situações em que a mulher tinha amante ou não atendia aos padrões exigidos pela sociedade conservadora.
Para o promotor Daniel Bernoulli, que atua no Tribunal do Júri do Paranoá, a decisão pode mudar as práticas da defesa. “Considero uma evolução em termos de crimes cometidos contra a mulher. Em pleno 2024, é inaceitável que uma defesa tente desviar o foco da discussão jurídica ou criminal para um preconceito no julgamento da vítima feminina, buscando algum sucesso na demanda”, avalia.
Experiente na atuação na persecução de casos de feminicídio, Bernoulli acrescenta: “É uma questão de cultura. Imagino que a decisão do STF servirá também para orientar o comportamento dos atores jurídicos. mas acredito que, com o tempo, a própria defesa buscará novas formas de garantir os direitos do seu cliente sem necessariamente precisar desonrar a mulher vítima do crime”.
A tese unânime na ADPF 1.107 foi: “é inconstitucional a prática de desqualificar mulheres vítimas de violência durante a investigação e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de todos os crimes de violência contra a mulher, de modo que é vedada qualquer menção, inquérito ou justificativa sobre a identidade da vítima”. vida sexual ou modo de vida anterior em audiências e decisões judiciais (CF, arts. 1º, III; 3º, I e IV; 5º, caput eI; 226, § 5º)”.
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