Por Mariana Covre* – A luta pelo reconhecimento dos direitos é inerente à condição de nascer mulher, que define a existência social e jurídica do género feminino ao longo da vida. Avanços seguidos de graves retrocessos devem nos colocar, como sociedade, num lugar de alerta permanente diante do risco de descompasso que possa existir entre o tempo da civilização e a chegada da barbárie, marcado justamente pelas tentativas de castração dos direitos fundamentais e garantias. , como o que estamos vivenciando agora.
Desde que o Projeto de Lei nº 1.904/2024 entrou na pauta de discussões da Câmara dos Deputados nos últimos dias, o Brasil se relocou para um cenário arriscado de retrocesso histórico dos direitos e garantias de gênero. Um verdadeiro aborto, mas institucionalizado e com direitos.
O PL ficou popularmente conhecido como “PL do Estupro”, “PL do Aborto” ou “PL da Gravidez Infantil” porque são essas indignações sociais que ele acabará incentivando, caso vire lei. Ao equiparar o aborto previsto no Código Penal Brasileiro desde 1940 ao crime de homicídio, imputando às mulheres, meninas e gestantes, vítimas de estupro, a possibilidade de pena de até 20 anos de prisão, banaliza o crime de estupro , cuja pena máxima pode chegar a 10 anos de prisão.
Isto acontece mesmo que o país esteja imerso numa realidade social aberta de mais de 67 mil incidentes de violação contra mulheres durante o ano (2022). O que equivale a 1 estupro a cada 8 minutos, segundo o Relatório Socioeconômico Anual sobre Mulheres.
Desse número, registramos cerca de 56 mil denúncias por ano e 156 casos por dia de estupro contra meninas menores de 14 anos, das quais, todos os dias, 38 tornam-se mães no Brasil. Se pensarmos neste cenário como aquele que antecede a tentativa de retrocesso normativo que vivemos, onde deveria estar o foco de uma intenção legislativa consciente e punitiva, há homens cometendo graves crimes de violência sexual, marcando para sempre a vida das mulheres e meninas, em relação às quais não há esforços para agravar a criminalidade.
Para eles, quando identificados e sob custódia, surge o “Estado Fiador”, aquele que garantirá a sua integridade física no sistema prisional. Num contexto posterior aos resultados da alegação normativa prejudicial, se esta se tornar lei no nosso país, também haverá crianças nascidas de mães violadas. Quem cuidará deles?
O que está a surgir é uma pena ainda mais severa do que as previstas para crimes de esterilização e remoção de úteros femininos, por exemplo, se a decisão parlamentar da altura fosse castrar os direitos de género de outras formas.
O debate poderia ser encerrado pela própria presença da Constituição Federal, que carrega bastante potencial diante de uma tentativa política momentânea de reivindicar uma lei que sacrifica a maioria da população (51,5%) e o eleitorado (52,65%) do Brasil , composto por mulheres.
Nunca é demais lembrar que temos os direitos de gênero legalmente protegidos numa lei maior que predomina sobre qualquer tentativa de uniformização das diversas convicções meramente político-ideológicas, morais, religiosas, enfim, transcendentais à racionalidade dos direitos constitucionais.
A polarização que surge para atacar o país e seu povo é refutada sem imposição em 24 segundos de votação, num painel majoritariamente masculino, que não representa a maioria da população brasileira. O debate verdadeiramente consciente é resolvido a partir de uma perspectiva constitucional.
A luz da questão está nos direitos fundamentais das mulheres, das meninas e das pessoas que dão à luz, já garantidos na Constituição Federal. O que o Congresso faz neste momento nada mais é do que perder a oportunidade de exercer previamente seu controle de constitucionalidade no nascimento de uma norma e transferi-lo ao Supremo Tribunal Federal para fazê-lo imediatamente após qualquer ato que viole direitos que se torne lei.
Isto acontecerá porque os direitos de género conquistados e consagrados na carta constitucional não são abdicados com base em muitas lutas que continuarão perenemente, atravessando gerações e garantindo o grau de emancipação feminina, que é naturalmente decisivo para a emancipação e o desenvolvimento geral de uma nação inteira. .
*Advogada com prática jurídica especializada em compliance de gênero
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