Por Gilmar Mendes* — Conforme amplamente divulgado pela imprensa, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 26/06/2024, deliberou sobre a natureza do delito cometido por quem “adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo lhes, para consumo pessoal, medicamentos sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (art. 28, caput, da Lei nº 11.343/06 – Lei de Drogas), estabelecendo, ao mesmo tempo, critérios objetivos capazes de separar, de um lado, o usuário, e, de outro, o traficante (RE 635.659/SP, com tema de repercussão geral).
O julgamento teve início em 19/08/2015, sendo alvo de muita desinformação. À medida que os Ministros deliberavam sobre o recurso, vieram à tona críticas infundadas aos entendimentos manifestados, como se a decisão representasse um aceno do Judiciário à liberação das drogas.
Nada mais incorreto. A análise das votações e debates que compuseram o acórdão revela claramente que o Tribunal: (a) estabeleceu a ilegalidade do uso de drogas (mesmo que recreativas), de modo que ninguém tem o direito de usá-las; e (b) reconheceu, de acordo com legislação aprovada pelo Congresso, os múltiplos malefícios envolvidos no consumo dessas substâncias, prescrevendo ações institucionais que tratem o problema como uma questão de saúde pública, sem necessidade de maiores encarceramentos e estigmatização.
Não por outro motivo, o Tribunal determinou o desbloqueio do Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD), para que os recursos possam ser utilizados, entre outras finalidades, em programas que visam a recuperação de quem já é usuário (para que se desloquem longe desta realidade) e a prevenção, através da realização de campanhas sobre os malefícios do uso de drogas, em linha com o que, de fato, foi realizado com grande sucesso nas políticas públicas de desestímulo ao uso do cigarro. Portanto, percebe-se que não houve legalização, autorização ou qualquer tipo de incentivo ao uso de tais substâncias.
Neste acórdão, o Tribunal não discutiu o tratamento legislativo do tráfico, uma vez que a conduta é criminalizada conforme determina a Constituição (art. 5º, XLIII). Quem vender, distribuir ou manter armazenadas substâncias ilícitas para esse fim comete crime inafiançável, não passível de concessão de gratuidade ou anistia, e está sujeito às penas previstas no art. 33 da Lei 11.343/06, que chegam a 15 anos de reclusão. Não houve, portanto, nenhum movimento no sentido da liberação de drogas, nem qualquer tipo de avanço indevido nas competências do Congresso.
Portanto, é necessário reafirmar o primeiro aspecto muito importante do caso: o Tribunal apenas suprimiu a repercussão penal da conduta do usuário, quando se tratava do uso de cannabis sativa, enquanto não houver provas da intenção de comercialização. Ao mesmo tempo, enfatizou que ainda devem ser aplicadas as sanções legais (advertência sobre os efeitos das drogas e frequência de curso educativo), em procedimento não penal, e que a autoridade policial deve apreender a substância estupefaciente.
O alicerce dessa compreensão está na humanização do tratamento dispensado aos usuários, deslocando esforços do campo criminal para o da saúde pública. Entendeu-se que é necessário conciliar a aplicação de sanções administrativas com o acolhimento do dependente, devendo o Estado oferecer-lhes atenção especializada.
Mas há um segundo tema que merece destaque, que diz respeito à definição de diretrizes seguras que estabeleçam a diferenciação entre traficante (que comete crime) e consumidor (que, se envolvido com cannabis sativa, comete contraordenação).
Neste ponto, durante os debates, surgiram evidências de que a ausência de critérios claros para a caracterização do tráfico de drogas produz seletividade criminal, fazendo com que “os jovens, especialmente os negros (pretos e pardos), analfabetos” sejam tratados com muito mais rigoroso do que aqueles “acima de 30 anos, brancos e com ensino superior”, como observou o ministro Alexandre de Moraes.
Estou certo de que os Ministros tiveram em conta a experiência adquirida na prática judicial relativa à aplicação da Lei da Droga: trata-se, em geral, de condenações baseadas apenas no depoimento de agentes policiais, resultantes de um extremo rigor na aplicação da lei contra uma determinada parcela da população.
Assim, estudos especializados e a experiência do Tribunal apontaram para a mesma realidade: a decisão entre efetuar a prisão em flagrante (por tráfico), ou libertar o usuário com aplicação de penas alternativas (por posse para uso pessoal), passa pela arbítrio dos membros do sistema de Justiça, que, mesmo sem ter intenções específicas, muitas vezes proporcionam um tratamento mais rigoroso às pessoas em situação de vulnerabilidade.
A desigualdade envolvida nesta ação estatal é evidente: diante da mesma realidade, os poderes públicos passam a se comportar de forma diferenciada dependendo do sexo, cor, idade ou renda dos envolvidos, o que vai contra o princípio da igualdade estabelecido pela Constituição.
Em situações como esta, a postura do Tribunal não poderia ter sido outra: atuar com contundência para salvaguardar a inviolabilidade pessoal e as garantias constitucionais, como forma de concretizar o postulado da igualdade, com atenção voltada, sobretudo, para as camadas populacionais que são objeto de constante violência institucional.
Assim, fica aqui o segundo aspecto da decisão que merece ser destacado: na esperança de pôr fim àquela situação de injustiça, foi estipulado que a posse de até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas femininas qualifica o agente , em princípio, como usuário, afastando-o do contexto criminal. Este marcador será utilizado até o momento em que o Parlamento, local próprio para deliberações políticas, cuidar do tema. Além disso, é certo que esta caracterização inicial do agente como utilizador poderá ser ultrapassada, possibilitando a realização da detenção e de outros procedimentos de natureza processual penal, sempre que existam indícios de intenção comercial. Nestes casos, onde haja indícios de tráfico, o agente ficará sujeito aos rigores da legislação penal, com todas as consequências daí decorrentes.
O Tribunal também emitiu ordens e apelos às autoridades constituídas, para que fossem tomadas as medidas administrativas e legislativas necessárias ao enfrentamento do problema, agora com foco em uma visão de saúde pública. Além disso, foi determinada a referida liberação do saldo acumulado do Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD).
Por fim, com estes esclarecimentos sobre o julgamento, reforço que não pretendo defender a impossibilidade de avaliação crítica em relação ao que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Numa democracia saudável, as decisões judiciais, desde que aceites, podem ser sujeitas à avaliação dos cidadãos, e qualquer argumento que contribua para melhorar o debate é bem-vindo.
Contudo, esta discussão precisa ser realizada num cenário em que se excluem inverdades e mal-entendidos, no que diz respeito à verdade dos fatos — premissa sem a qual nem a democracia nem o Estado de Direito sobrevivem.
“O Tribunal não discutiu o tratamento legislativo do tráfico, pois a conduta é criminalizada conforme determina a Constituição (art. 5º, e anistia, e se enquadra nas penas do artigo 33 da Lei 11.343/06, que chegam a 15 anos de reclusão .
*Gilmar Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), doutor em direito pela Universidade de Münster (Alemanha), professor de direito constitucional em cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)
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