Por Felipe Rodrigues* — Recentemente, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp 2.093.778, referente a um caso envolvendo viagens interestaduais para o Paraná, e entendeu que o fretamento por meio de plataformas tecnológicas, como o Buser, representaria prestação irregular de transporte rodoviário de passageiros e, portanto, deverá ser proibida até que a legislação seja adaptada. A discussão envolveu justamente a possibilidade de utilização de plataformas tecnológicas para intermediar viagens fretadas ou se a utilização desse elemento adicional desqualificaria o fretamento, equiparando-o a uma linha tradicional.
Confirmada a premissa acima, o posicionamento do STJ será, no mínimo, peculiar. Afinal, uma atividade econômica privada de baixo risco (fretamento) dependerá de uma lei que autorize o seu exercício para que possa ser realizada. Como compatibilizar esse entendimento com o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal? Parece-nos, com o devido respeito aos eminentes juízes, uma tarefa hercúlea.
Soma-se a isso a previsão do art. 4º, IV da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19), segundo o qual a Administração Pública não pode impedir a adoção de novas tecnologias, salvo nos casos em que a atividade em questão seja expressamente considerada de alto risco (o que também não é é o caso do fretamento).
Ora, o entendimento da falta de regulamentação específica sobre uma actividade que actualmente é regulamentada por um decreto da década de 90 não poderia representar um impedimento ao exercício de uma actividade económica, especialmente considerando que a omissão do Estado pode ser uma escolha do regulador. Neste caso, se não houver proibição legal, o indivíduo deverá poder exercer a sua atividade sem limitações.
Deve-se notar que, ao contrário do que foi afirmado no depoimento por advogados combativos, não se trata de “anarcocapitalismo”, mas apenas de uma leitura lógica do princípio da legalidade. O afretamento — realizado ou não na plataforma Buser — é uma atividade privada e essa premissa é fundamental para definir os limites para a realização dessa atividade.
Deve-se considerar que a utilização de plataformas tecnológicas, ao digitalizar o processo de reserva, agregou à experiência de fretamento. Se antes o autocarro de turismo era a única opção para grupos, hoje existem novas (e múltiplas) rotas. Isto não é uma distorção da atividade.
A única diferença entre as viagens fretadas tradicionais e as realizadas em plataformas tecnológicas é a não observância da chamada regra do circuito fechado. Segundo esta regra, a viagem de ida e volta deve ser feita pelas mesmas pessoas, no mesmo veículo. Contudo, existem inúmeras decisões em todo o país que reconhecem a inconstitucionalidade (formal e material) desta norma, estabelecida pelo Decreto Federal 2.521/1998 e pela Resolução ANTT 4.777/2015. O tema é relevante e ainda aguarda normatização nos tribunais brasileiros.
De qualquer forma, considerando que há estados que não exigem o cumprimento da regra do circuito fechado para afretamento, parece-nos que a realização de uma viagem fretada em circuito aberto não a torna, por si só, uma viagem em linha regular. . . Então, qual é a razão para proibir esta atividade (repito: privada)? A resposta ainda não foi dada.
Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de tratar questões que tocam nesta questão.
Ao julgar o caso Uber, o STF reconheceu que “a captura regulatória, uma vez evidenciada, legitima o Judiciário a rever a medida suspeita, como instituição estruturada para decidir de forma independente em relação às pressões políticas, a fim de evitar que a democracia se torne um regime subserviente”. aos privilégios de grupos organizados, deixando intocada a separação de Poderes diante da ação de freios e contrapesos para anular atos arbitrários do Executivo e do Legislativo”. Ou seja: a falta de regulamentação não deve ser motivo para o Judiciário proibir uma atividade.
Por sua vez, ao se deparar com a questão do regime de autorização de linhas regulares e tradicionais de ônibus, o STF decidiu que a “abertura do setor de transporte rodoviário interestadual e internacional a novos entrantes aumenta a concorrência em um setor inegavelmente estratégico. para o desenvolvimento nacional, torna ainda mais significativas as externalidades decorrentes da livre concorrência, como o aumento tecnológico, o aumento da qualidade e a redução de custos”. Reconheceu-se, portanto, que é do interesse da sociedade a abertura do mercado de transporte rodoviário terrestre (seja para linhas regulares/tradicionais, como naquele caso; ou para viagens fretadas, como no caso julgado pelo STJ).
A premissa adotada pelo STF nesses casos, nos parece, é contrária à premissa adotada pelo STJ no julgamento do REsp 2.093.778, de modo que o tema precisará ser revisitado para que haja uma definição a respeito da expansão e desregulamentação do transporte rodoviário. Neste contexto de posições dissonantes, não surpreende que o ministro Hermann Benjamin, antes de emitir seu voto, tenha mencionado expressamente que ainda não estava convencido sobre o tema, mas que seguiria a maioria formada até aquele momento, portanto que mesmo o resultado do REsp nº 2.093.778 pode ser considerado um entendimento definitivo da 2ª Turma do STJ.
Como é típico de questões como essa, o tema é desafiador, inovador e também será muito discutido no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Esta é a primeira decisão dos Tribunais Superiores sobre o tema. Mas certamente não será o último.
*Felipe é doutorando e mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em direito processual civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É sócio do Desio Senra Advogados
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