Presidente do Fórum de Integração Brasil Europa (FIBE), professor de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa Vitalino Canas tem um profundo conhecimento da realidade brasileira. Em entrevista ao Correio, o jurista analisa os acontecimentos recentes na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023, a democracia, o papel do Judiciário — especialmente do Supremo Tribunal Federal — na construção do equilíbrio da sociedade, a legalização das drogas e semi- -presidencialismo.
Canas participou na mesa de abertura do XII Fórum de Lisboa, realizado em junho, na capital portuguesa, organizado pela Faculdade de Direito de Lisboa, IDP e Fundação Getúlio Vargas, com a participação de juristas e autoridades públicas dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Ele acredita que o evento é uma grande oportunidade para o Brasil se destacar na Europa. “Acredito que neste momento em Portugal (e talvez na Europa) não haja uma “vitrine” tão plural e tão completa do que o Brasil é hoje, na visão franca e descomplexada dos três poderes e de muitas mais individualidades.
Autor da lei que reformou a política de drogas em Portugal, Vitalino Canas afirma que a decisão do STF de adotar o consumo e o tráfico como um dos critérios de avaliação é a mais objetiva. Mas defende, assim como acontece no Brasil, que o juiz tenha a prerrogativa de avaliar o caso específico. Ele afirma que a legalização do consumo não incentivou o aumento. “Os relatórios internacionais, especialmente os do Observatório Europeu, não mostram qualquer evidência de aumento do consumo nos anos seguintes à descriminalização em 2000. Pelo contrário, fenómenos perversos ligados ao consumo, como mortes, consumo de risco, etc., têm diminuiu. A experiência portuguesa é geralmente considerada uma referência nos quadros internacionais, na Europa e nos EUA”.
Como você viu o episódio ocorrido no dia 8 de janeiro de 2023, em que as sedes dos Três Poderes da República Brasileira foram invadidas e vandalizadas? Na sua avaliação, houve uma tentativa de golpe de Estado?
Vi com espanto, é um acontecimento absolutamente anormal nas democracias consolidadas. Mas houve obviamente um efeito de cópia em relação aos acontecimentos no Capitólio em Washington. Às vezes é difícil estabelecer a fronteira entre o que é um golpe de Estado e outra coisa. Um golpe de Estado pressupõe a existência de uma liderança assumida, um desejo inequívoco de derrubar o Governo e talvez as instituições democráticas, um planeamento e execução mínimos com alguma coordenação com vista a alcançar o fim. Visto de fora, parecia mais um conjunto de atos de vandalismo, cometidos por pessoas que simplesmente queriam destruir algo, pela simples alegria da destruição. Pior ainda que um golpe de estado, porque geralmente sempre tem a intenção de melhorar alguma coisa (embora geralmente a torne pior).
Você acredita que a democracia brasileira está em risco? É frágil?
A democracia, hoje, como em tempos anteriores, é globalmente frágil e pode, portanto, ser destruída. O Brasil tem muitos períodos em sua história em que a democracia foi preterida em detrimento de regimes autoritários. Eu diria que o perigo da democracia brasileira não é imediato nem maior que o das outras, mas existe, porque, pelo que observamos no mundo, ela é frágil e tem inimigos poderosos. No entanto, como demonstrei num texto que publiquei há poucos dias, as muitas eleições que tiveram lugar nos últimos meses mostram geralmente a resiliência dos sectores democráticos a nível global.
Nos últimos anos, o Judiciário tem desempenhado papel de destaque nos principais debates públicos. Saiu daquela postura hermética e hoje até atua politicamente. Como você avalia essa transformação?
O Poder Judiciário, particularmente a jurisdição constitucional, tem desempenhado um papel fundamental em todo o mundo, desde o final da Segunda Guerra Mundial até hoje, na consolidação do constitucionalismo e do Estado de Direito. Isto é reconhecido pelos cidadãos em geral, daí o prestígio de que goza. Por outro lado, os próprios políticos eleitos preferem por vezes que, em alguns casos, o Judiciário tome decisões em áreas onde ainda não há consenso social e político. É evidente que, para continuar a usufruir deste panorama favorável, o Judiciário deve ser criterioso, astuto e evitar parecer um órgão com motivação politicamente partidária. Se não for esse o caso, perde o respeito e a legitimidade democrática.
Como encontrar o equilíbrio entre os Três Poderes — Judiciário, Executivo e Legislativo?
O equilíbrio deve necessariamente ser definido pela Constituição e pela lei. No caso da Constituição de 1988, o equilíbrio é estabelecido permitindo a intervenção dos Três Poderes na maioria das decisões fundamentais, inviabilizando decisões unilaterais de força sem possibilidade de controle, inclusive de constitucionalidade. A Constituição brasileira é altamente detalhada e regulatória, o que significa que a margem de manobra do legislador é limitada e o STF é solicitado a intervir com muita frequência. O grande alcance de intervenção do STF, um dos mais extensos do mundo, decorre da própria natureza da Constituição e das competências a ela conferidas, que é exercida pelo poder constituinte e de emenda constitucional, localizado no próprio Congresso Nacional. .
O Judiciário brasileiro entrou em discussões como a descriminalização das drogas, o aborto e questões orçamentárias, como a desoneração tributária da folha de pagamento para atividades econômicas. Como você vê esse papel dos magistrados?
Como já referi, a comunidade e os próprios políticos preferem muitas vezes que o próprio Judiciário dê os primeiros passos e mesmo os passos decisivos em situações de consenso insuficientemente formalizado, embora já indiciados pelo espírito de liberdade da Constituição. Os casos a que se refere são casos típicos em que vários tribunais constitucionais a nível global desempenharam um papel decisivo. Por exemplo, a descriminalização do consumo de drogas e a consideração dos consumidores como doentes e não como criminosos é uma questão de cumprimento do direito fundamental à saúde. Um dos principais problemas, porém, é a distinção entre usuários e traficantes, visto que existe o fenômeno dos pequenos traficantes que traficam para ter dinheiro para consumir. Deve haver critérios objetivos que estabeleçam uma linha de base, que seja complementada pelo julgamento caso a caso do juiz.
Qual a sua avaliação sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu critérios objetivos para diferenciar usuários de traficantes de maconha? O principal critério é a quantidade da droga em poder do investigado. Como você avalia essa questão?
Este critério quantitativo foi o que adoptámos também em Portugal em 2000. Ainda me parece ser o mais objectivo, embora, como disse antes, deva haver a possibilidade de um juiz ou entidade julgadora poder fazer uma avaliação no caso concreto, pelo que, se for evidente que se trata de um traficante de consumo, isso deve ser tido em conta. É um equilíbrio complexo, isso é certo. Em Portugal continua a ser tema de debate, pois os consumidores continuam a ser detidos por tráfico.
Em Portugal, a posse de drogas para consumo não é considerada crime. Essa regra incentivou o consumo? Como você avalia a política de drogas em seu país?
Os relatórios internacionais, especialmente os do Observatório Europeu, não mostram qualquer evidência de aumento do consumo nos anos seguintes à descriminalização em 2000. Pelo contrário, os fenómenos perversos ligados ao consumo, como mortes, consumo de risco, etc., diminuíram. . A experiência portuguesa é geralmente considerada uma referência em enquadramentos internacionais, na Europa e nos EUA.
Em junho, importantes representantes dos Três Poderes do Brasil e das autoridades portuguesas reuniram-se no Fórum de Lisboa. Qual foi, na sua opinião, a grande contribuição deste seminário?
O Fórum de Lisboa é uma grande conquista da Faculdade de Direito de Lisboa, do IDP e da FGV, que constitui uma oportunidade única para académicos, políticos, pensadores, empresários de Portugal (e de outros países) conhecerem e conhecerem o Brasil, através do principais autoridades e figuras do país que nos honram, há quase 20 anos, com a sua presença. Achamos que é também uma grande oportunidade para o Brasil se mostrar na Europa. Acredito que não exista atualmente em Portugal (e talvez na Europa) nenhuma “vitrine” tão plural e tão completa do que o Brasil é hoje, na visão franca e descomplexada das três potências e de muitas mais individualidades.
Você acha que eventos como esse são produtivos e promovem a integração entre Brasil e Portugal?
Sim, esse é o objetivo. Em três dias temos dezenas de debates e eventos (este ano, mais de 50), que permitem uma concentração de conhecimento e criatividade, em ambiente académico e sem constrangimentos institucionais, o que considero necessário aos decisores dos vários sectores . No Fórum ninguém está vinculado a nada, é dito e debatido livremente.
No Fórum de Lisboa, o ex-presidente Michel Temer propôs uma mudança constitucional no sistema de governo para o semipresidencialismo. Você acredita que esse seria um caminho melhor para o Brasil? Por que?
Sim, o Presidente Temer tem sido um dos grandes apologistas, conhece muito bem o sistema português. É claro que a avaliação deve ser principalmente local, não é mais possível importar sistemas sem adaptação à realidade. Olhando para os últimos anos, percebo que há uma crescente assunção de poderes por parte do Congresso, exemplo disso é o regime de emendas obrigatórias. O Congresso não hesita em demitir o Presidente por razões políticas, como é o caso dos primeiros-ministros nos sistemas parlamentaristas e semipresidencialistas, fê-lo duas vezes em cerca de 25 anos, o que enfraquece a posição presidencial num ambiente partidário cada vez mais fragmentado e até polarizado, deixando-o muito exposto e incapaz de dissolver as casas do Congresso em situações de impasse. O sistema semipresidencialista restaura o equilíbrio e exige maior coordenação, pode ser uma boa solução para evitar um deslizamento para o que chamo de sistema de assembleia presidencial.
A tendência global é para o crescimento das forças de direita?
Sim, sem dúvida, especialmente a direita radical ou a ultradireita. Da Holanda à Argentina, da União Europeia ao Brasil, da França à Alemanha e ao Reino Unido. Mesmo na África do Sul, um partido de extrema-direita conquistou recentemente assentos no parlamento. No entanto, a progressão da ultradireita não é tão rápida e radical como alguns previam e houve mesmo algumas derrotas, como em França, na 2.ª volta das eleições legislativas. Mostro isso também no texto que publiquei.
O que acontece, na sua opinião, nos Estados Unidos após o ataque ao ex-presidente Donald Trump?
A situação ficará ainda mais fluida. Todos dizem que o ataque favorece Trump. Mas o ataque não foi sobre as eleições, mas sim sobre o que aconteceu com Bolsonaro. As eleições são daqui a 4 meses, o efeito de “simpatia” irá desaparecer. Por outro lado, esta é uma prova de que um discurso que apela à paixão e à violência tem efeito ricochete e pode atingir qualquer americano. Mas as dúvidas sobre a capacidade de Biden têm efeitos imprevisíveis. É difícil fazer previsões. Eu diria que, tendo em conta eleições como a francesa ou a do Parlamento Europeu, uma votação de última hora poderia realmente bagunçar as contas de Trump. Mas eu não apostaria em nenhum resultado.
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