Numa soma que tem a inevitável “grandeza de uma simples história”, como destaca um dos diretores do Gerais da Pedra, Paulo Junior, o filme que será exibido hoje, às 19h (no Cine Brasília, EQS 106/107), reconsidera as origens de um mito local (para Minas Gerais) e, universal, para a literatura: Grande Sertão: Veredas, cujas origens variam entre ser inventada, ou não, pelo autor Guimarães Rosa. “O Grande Sertão, Rosa e Diadorim se envolvem na narrativa, um pouco escondidos, um pouco revelados, dissolvendo-se como mais um personagem do documentário”, diz Gabriel Oliveira, outro codiretor (ao lado de Diego Zanotti).
O documentário, assim como o livro, regurgita a sofisticação do discurso dos analfabetos (muitas vezes) que davam corpo às andanças e aos apontamentos de Rosa. “Na nossa concepção, o infinito do sertão ressoa nas múltiplas possibilidades tanto de pensar, interpretar e vivenciar o Grande Sertão: Veredas, quanto nas formas de viver e interagir com as pessoas que lá estão até hoje. a oralidade das comunidades se encontra e forma esse redemoinho em que tudo sempre ganha um novo sentido”, argumenta Gabriel Oliveira.
“Que houve (algo real no livro), houve (sic)”, argumenta um dos personagens do povo; ao qual outro, revendo fábulas, defende a existência do “lado oposto de Deus”. “Queríamos que o espectador fosse trazido para esse universo geral e entrasse na atmosfera dos personagens do filme”, reforça Gabriel. A dureza do discurso feminista de uma personagem (“Quem me bate, não fica nem um osso”, diz ele, ao falar do pai) é marcada por gentilezas, como indica a senhora que, a certa altura, garante que “Deus derramou paz” e também na fala da parteira, capaz de confessar que recebeu “muita vida”, a cada parto realizado. Em outro caso, um entrevistado gentilmente ressalta que “tratar bem os outros é muito bom”.
Nem “domesticar” nem dividir o romance estava nos objetivos do grupo, segundo Paulo Junior, pronto a defender o paralelo da “viagem labiríntica, truncada, texturizada, elaborações sobre a vida e a morte, Deus e o diabo — tudo sob a delicadeza da um homem comum”. E assim se perpetua o imaginário da obra guiado pelas emoções dos entrevistados do filme. Nos levantamentos da natureza e da terra feitos pelos coronéis de Guimarães Rosa, que definiu (em seus escritos) a cor do vento — o verde —, surgiram mulheres corajosas (longe do “planeta de pedra”, em que a água definha), entre elas, Diadorim, apegada ao “dever de guerra” e desligada do “gozo do amor”, ainda que visse, a todo momento, seu querido Riobaldo “envergonhado” e “encantado” pela variedade de sentimentos conflitantes.
Entrevista // Diretores Gerais da Pedra
Como você recorta material produzido para cinema, para reescrever Guimarães Rosa?
Paulo Júnior – O que vejo como mais rosiano é essa jornada que se baseia na escuta de histórias. É um filme de conversa, interessado nessa elaboração que a gente faz quando a gente meio lembra, meio inventa uma história para alguém, que nos lembra um pouco a própria literatura da Rosa, de tomar notas, de ouvido aberto e essas tramas do sertão, para A partir daí, a camada de linguagem que ele trouxe surge como quase ninguém. Nossa ideia foi correr o risco de tirar algo desse encontro entre literatura, oralidade, câmera e microfone. Então aqui Grande Sertão: Veredas é mais um gatilho para esses encontros do que um objeto do filme.
Morte, Amor, Nascimento são divisões no filme – por que escolheram começar pelo final?
Diego Zanotti – O filme começa no final, e foi assim que fizemos as gravações, começamos com a morte e terminamos com o nascimento. Para mim, uma coisa fica clara: na história, Diadorim “nasce” na morte, quando sua verdadeira identidade é revelada. Esta batalha final, cheia de contradições, reflete o espírito do nosso filme, que começa sem a intenção de chegar, afirmar ou refutar um “Grande Sertão”. Estamos apenas seguindo os rastros, sem um ideal de exaustão.
Quais locais resumem mais claramente o mundo de Guimarães Rosa?
Diego Zanotti – Para o imaginário estabelecido pela obra de Guimarães, nenhuma localização se esgota, porque há muito mais mistério do que um percurso definido, muito mais imaginário do que um mapa, muito mais histórias do que locais fiáveis. O que Gerais da Pedra faz é ampliar e mesclar ainda mais essa geografia imaginada. Marca-se mais geopoética do que discurso puro e degradado. Acho que Paredão de Minas e Itacambira foram justamente algumas das localidades que mais se aproximaram de uma “sensação de Diadorim”, a neblina que permeia as Gerais nas terras altas do Espinhaço e nas baixadas do Rio do Sono. Ser levado ao suposto túmulo do personagem por um nativo da região, a meu ver, foi o momento em que a relação imaginário-geografia-cinema foi levada ao limite.
Rose é silêncio ou convida o leitor para uma ópera interior?
Paulo Júnior – A partitura original (de Paulo Sartori) teve total liberdade para ser criada, pois não fazia sentido termos uma música para tentar decifrar o Rosa ou o sertão mineiro. As músicas (de Déa Trancoso) sim, talvez busquem um diálogo um pouco mais poético com o que está sendo dito e abordado.
Gosto muito quando alguém diz que a música do filme é dissonante, estranha, forçada, exagerada. Atravessar o Grande Sertão é muito barulhento, não é tranquilo. Faz parte da nossa ideia, e do que o próprio Rosa disse, de fazer a literatura decolar. Tinha que ser um pouco barulhento, então a cachoeira faz barulho, tem a estrada (da viagem), com vidros abertos.
A remodelação moderna dos gêneros altera o alcance e as perspectivas de leitura da obra?
Gabriel Oliveira – A intenção do filme sempre foi interagir com a proposta de Rosa para o personagem Diadorim. O livro é de 1956, Guimarães Rosa nasceu em 1908. O interessante de filmar em 2017 e exibir o filme em 2024 é que esse jogo do gênero de Diadorim se transformou ao longo dos anos. Está ganhando poder! Penso que a crítica literária e a criação artística deveriam explorar cada vez mais este tema.
O que você acha das recentes e permanentes adaptações audiovisuais do livro?
Diego Zanotti – Tenho a sensação de que jamais odiarei uma adaptação de Grande Sertão: Veredas, justamente porque entendo que o Grande Sertão de Guimarães Rosa pode ser muitas coisas, inclusive nada, nada. Ao assistir a uma adaptação, presumo que é impossível ser completamente fiel à obra, e que o que veremos será apenas mais uma visão deste Todo complexo. Algumas adaptações me tocam mais, outras menos. Guel Arraes (Grande Sertão) explode em catarse, Bia Lessa (O diabo na rua, no meio do redemoinho) implode em abstração e ousadia, Gerais da Pedra respira curiosidade. Tudo dentro deste mapa Roseano sem fronteiras.
Paulo Júnior – Gosto do que vejo, gosto de pensar que alguém saiu de casa para ver Rosa no cinema e que talvez seja uma forma de mergulhar nessa grande brisa literária. Gosto de ver tanta gente bagunçando um pouco a obra, profanando, tirando um livro — vamos lembrar, é só um livro — desse lugar canônico, sagrado, afinal já se passaram cerca de 70 anos desde o texto, mais uns 40 anos desde a minissérie da Globo. Acho que a adaptação teatral de Bia Lessa, que agora virou filme, é algo inesquecível para quem ama Grande Sertão: Veredas, vê-lo ali, o mais cru e despojado possível. Gosto da coragem de Guel Arraes em trazer Riobaldo e Diadorim para aquele outro tempo, sob outros códigos, de forma arriscada e grandiosa, sem precisar de carro de boi ou estrada de terra. É um clássico, está aí para os artistas deitarem e rolarem por cima.
Existe um “lado amargo” em Guimarães Rosa? Na verdade, você o vê como um guerreiro?
Diego Zanotti – Existe, sim, um “lado amargo” nele. Mas Rosa é mais sutil e filosófica, é preciso ler para sentir. Lutas internas, dilemas morais e a inevitabilidade da morte fundamentam uma história dramática de um Sertão maior do que qualquer descrição. Em Grande Sertão: Veredas, por exemplo, o sentimento de culpa de Riobaldo, a perda de Diadorim e a constante ameaça do destino provocam esse amargor de uma existência atravessada por tensões profundas. A amargura em Rosa é filosófica, um confronto, um paradoxo: é quando o belo e o trágico coexistem. Guimarães foi, no seu melhor, um guerreiro da palavra. Ele revisitou a batalha de sua própria vida, com maestria literária sertaneja.
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