Antes de sua despedida definitiva, em 2017, quase centenário, o sociólogo, professor e crítico literário Antonio Candido continuou cumprindo a missão sugerida por sua mãe Clarisse, “luminosa e grande leitora”. A cada impressão de leitura e investigação literária, concluía verificações e considerações, anotadas em cadernos numerados. Como esperado, a prática trouxe muitos insights sobre a vida. Os dois últimos cadernos (dos 74 organizados) recheados de conhecimento, que comparavam o brasileiro a Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, foram pensados para uma versão cinematográfica do cineasta e montador Eduardo Escorel (que trabalhou com Glauber Rocha e Eduardo Coutinho). O resultado é o documentário Antonio Candido, Notas Finais, em exibição na cidade.
Vencedor de prêmios como Camões e Jabuti, a carreira de Candido foi impulsionada pela publicação na revista Clima, ao lado de Paulo Emilio Salles Gomes (fundador do Festival de Cinema Brasileiro de Brasília) e Gilda de Melo e Souza, filósofa, ensaísta e mestre, falecida em 2005. Para ele, “ideia fixa”, Gilda continua sendo seu receptáculo de amor, nos textos. Uma narração afável e serena, pela voz encantadora de Matheus Nachtergaele, abraça o carinho despertado por Gilda, cuja comunicação, mesmo através do silêncio, lhe proporcionou “profundo bem-estar”. A certa altura, Candido vê o fato de ter sido deixado para trás (atrás da existência dela) como uma “forma de egoísmo”.
Precedida pelos admirados Dom Paulo Evaristo Arns e Fidel Castro, a morte (com a qual “tudo se retira e se apaga”) ganha destaque no pensamento cotidiano de Candido. A partir do apartamento onde vive há 21 anos, lida com o imprevisível e com a sua saúde perigosa, bem como com a redução do ciclo de amizades, ao “ultrapassar a hora certa de morrer”. Não, porém, ele conhece, assim como o protagonista de A Morte e o Lenhador (da fábula de La Fontaine), a reação ao ceifador final. A trivialidade de presenciar, cada vez mais, os assassinatos cometidos por “meninos delinquentes” fere a sensibilidade de Cândido, capaz de lembrar a letra cantada, na sua frente, por Carybé: “Mata, que Dios perdona”.
Citações artísticas surgem no filme, que combina trechos de Monsieur Beaucaire (1924), estrelado por Rodolfo Valentino, e O Retorno de Arsène Lupin (1938). Tudo alivia a dolorosa experiência do lucro do “petróleo, das armas, das drogas e da prostituição” – nisso ele reformula a leitura de Baudelaire: “Sem dúvida, senhor, o homem nunca lhe deu melhor testemunho de sua (in)dignidade”. O autor de O romantismo no Brasil e O estudo analítico do poema parece, contudo, não enfraquecer. Ele sabe relembrar os choques com a primeira leitura de textos como Os Miseráveis (de Victor Hugo), Os Demônios (de Dostoiévsky) e Grande Sertão, Veredas (de Guimarães Rosa). “Taquicardia, choro e calafrios” o acompanharam, ao contrário, ao ler Machado, ele ficou preso, “mas com o corpo em paz”.
Fundador do PT, Candido exalta o orgulho petista, mas, no filme, vê diminuir a exaltação intelectual sistemática, diante dos dados da “política desastrosa”, do impeachment e da constatação de que eleições atualmente rimam com “operações comerciais caras”. Atentamente, Candido defende a perspectiva histórica de Lula ter “tirado milhões da pobreza absoluta”. Além disso, no que leu, como ávido consumidor de cartas, destaca um texto do atual presidente, insatisfeito com “agentes do Estado que usam a lei como instrumento de perseguição política”. Da alardeada base do socialismo, a cinebiografia exalta a ênfase na sempre “igualdade” coletiva (mesmo desencantada com o aspecto “liberdade”, com viés “individual”). Observador das classes dominadas, consciente da “natureza em desordem”, o ensaísta reitera, no filme, o “martírio secular da África”, entoado por Euclides da Cunha. Nisso, ele ironiza a escravidão como um “processo civilizatório” e o “descarte” dos negros na sociedade. Ainda “inquieto, tenso e insatisfeito”, é um prazer ouvir o escritor, nestes termos, contar a saga do imperador moçambicano Ngungunyane, exaltada por Mia Couto nos livros, mas que ele, Candido, conheceu num quintal em Minas Gerais, da boca do jardineiro analfabeto Antonio Lopes (ex-soldado), para quem leu (em voz alta) o definitivo Amor da Perdição, de Camilo Castelo Branco.
Entrevista // Eduardo Escorel, cineasta
Qual era sua relação com Candido e como você via Gilda — sua perspectiva mudou muito depois que o filme foi feito?
Sou casado com uma das filhas de Antonio Candido. Minha mãe, Sarah, foi sua colega de faculdade no final da década de 1930, e os dois se tornaram amigos para toda a vida, assim como meu pai, Lauro. Conheci Antonio Candido quando era adolescente, no início dos anos 1960. Em 1963, quando morava em São Paulo me preparando para o vestibular, me refugiava nos finais de semana na casa de Gilda e Antonio Candido e ouvia ela e ele conversarem sobre Mário de Andrade, filmes e tantas outras coisas.
A dupla edição (no roteiro e no filme) de Antonio Candido lhe deu a visão de um “homem pacificado”? Ele ficou no passado (em bons termos), com cada vez menos pares…
Os textos dos dois últimos cadernos que Antonio Candido deixou ao falecer em maio de 2017 revelam, em suas próprias palavras, “um homem pacificado” diante da morte iminente, mas nada de antiquado, por mais que seja tia Maria Clara havia dito que ele “nasceu tarde, pois o século XIX seria a época mais propícia”. O próprio António Candido admite que “a partir de certa altura (talvez há 30 ou 40 anos)” se desinteressou pela literatura actual, e em geral pela cultura e pensamento actuais, ao mesmo tempo que se refugiava cada vez mais no passado…”. assim, as anotações feitas entre novembro de 2015 e abril de 2017 comprovam que ele se manteve atento ao mundo que o cercava e foi capaz de refletir com lucidez até o fim sobre os mais diversos temas, alguns de natureza mais pessoal, outros de esfera pública, alguns corriqueiros, outros inusitados, relacionados, entre outros temas, à literatura, à situação política e à sua própria biografia.
Das limitações impostas na velhice, qual foi a mais cara para você?
Fica claro pelas anotações que a restrição mais incômoda decorrente da velhice era a fraqueza progressiva das pernas: “Há alguns anos restringi a área de caminhada, limitando-me a 15 quarteirões, depois a 10. De um há um tempo caí para oito, e agora raramente passo de seis, e no sexto me sinto um pouco cansado. A cada dia fico mais fraco, penso com certa melancolia que estou prestes a passar da bengala para a bengala. uma cadeira de rodas.
A invisibilidade da negritude no aspecto macro te preocupava em que escala?
As consequências da escravidão, entre nós, são uma das principais preocupações de Antonio Candido. Ele pensa no “martírio secular da África”, no qual os brasileiros estão historicamente envolvidos, já que somos “feitos do nosso passado”, portanto ligados “à sinistra teia de interesses que fundamenta o Brasil, via escravidão”. Ele considera que “nunca conseguimos avaliar corretamente que no Brasil o alvo da luta social é antes de tudo o negro, o grande excluído ainda hoje, esquecendo que no Brasil o trabalhador foi durante séculos o escravo, e que a solução ofuscada foi , depois da Abolição, descartando-o em vez de incorporá-lo. Este é o drama social e político fundamental que deveria ter sido o trampolim de um socialismo ajustado à nossa realidade. Neste sentido, a verdade é que falhamos, não sabíamos como fazê-lo. veja o que olhamos, e foi o problema básico para uma política com tendência igualitária.”
Alguns tópicos assustaram você da política?
A política brasileira, do final de 2015 ao início de 2017, ofereceu a Antonio Candido um espetáculo de acontecimentos e personagens aberrantes que o levaram, como ele não poderia permitir, a ter uma visão negativa dos acontecimentos. Ele permaneceu um observador atento, mas estava afastado de qualquer atividade partidária.
Qual foi a faceta mais complexa que Candido quase encobriu e como a resgatou?
Não sei o que seria essa “faceta”, como diz a pergunta, porque não identifico nada escondido nos dois últimos cadernos, dos quais tive o privilégio de ser o primeiro leitor. Para mim, não se tratava de resgatar algo oculto, mas de encontrar a forma adequada de tornar acessível ao espectador o que já está translúcido no texto.
O autor fala muito da sobrevivência oferecida pelas palavras, pelo mundo das palavras… Candido estava muito mais vivo, e que camadas a experiência criou nele?
Antonio Candido escreveu, em 9 de julho de 2016: “Observe bem. Uma das coisas boas é reduzir a vida às palavras. Elas podem ser uma espécie de sobrevivência”. Eu gostaria muito que o documentário Antonio Candido, notas finais pudesse ser mais uma forma de sobrevivência. Recém completado 98 anos, lidava com a iminência da morte há pelo menos 20 anos, quando escreveu, em 1997, As lágrimas dos livros, breve texto em que o narrador, já morto, se imagina “trancado no caixão”. ” esperando sua vez de ser cremado “enquanto seus livros choram lágrimas invisíveis de papel e tinta…”. À questão que relaciona a vitalidade com a juventude só posso responder: é provável. E à pergunta “Que camadas a experiência criou para você?” Peço desculpas, mas não saberia responder.
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