Memórias, conversas, menções a ícones da arte, como as colegas Yoná Magalhães e Odete Lara, e o impressionante estado de saúde, aos 91 anos, fazem rir o ator Othon Bastos. Sua satisfação fica clara ao discutir, no primeiro monólogo, as mais de sete décadas de sua trajetória na peça Eu não desisto, não!atração do Festival Cena Contemporânea, no Centro Cultural ADUnB, nos dias 12 e 13 de novembro, às 20h30. “Tenho ótimas lembranças de Brasília: eram personagens ainda ligados à capital. Estive muitas vezes na cidade, quando Brasília ainda não era ‘esta Brasília’ (de hoje). O chão estava vermelho; você se sujou todo”, destaca o ator, visto recentemente nas telonas do longa goiano O vôo do anjo.
Brasília pode até vincular o experiente Othon Bastos a ideais políticos, mas, na conversa, ele discorda. “As relações políticas são algo que me fala, e é isso. Não sou obrigado a dar palestras ou discursos sobre política. Eu sou quem sou e quero ser assim. Hoje sou porque fui o que fui. Esse é o (meu) tema Zen”, afirma o cenógrafo, com participação em mais de 150 obras.
Ele se orgulha de sua participação em filmes como São Bernardo (1972), baseado em Graciliano Ramos, além da emoção com a atual peça que remete ao clássico personagem Corisco, feita com Glauber Rocha. Estar em Brasília com um texto que faz uma retrospectiva de sua vida e carreira — tudo formatado em intermináveis conversas com o autor e diretor da peça Flavio Marinho — leva Othon a muito mais do que os pensamentos compactados nas 600 páginas que deram rumo ao monólogo.
Da narração de um documentário sobre JK, às obras de José Eduardo Belmonte e também à experiência do presidente Tancredo Neves (na telona), além dos longas-metragens Brasília 18% e Besta de sete cabeças (este último, sucesso retumbante no Cine Brasília), vincula fortemente Othon à capital cinematográfica. A sensibilidade do baiano ainda emerge, quando menciona O último cinema drive-in (2015). “O filme de Iberê Carvalho é amargo. Fala sobre a destruição de algo que foi maravilhoso, entrar no carro com as pessoas que você queria, ver o filme que você queria (sem estar em um shopping). Iberê fez um filme muito bonito”, afirma.
O que a literatura traz hoje e foi um alicerce?
Você não pode parar de ler, parar de estudar – você não consegue relaxar de jeito nenhum. Você deve acompanhar a vida, paralelamente, ver tudo, ouvir tudo — assistir televisão, ler jornais. Descobrir, além de brigar, discutir e não aceitar tudo. É certo dizer: “Eu não quero isso”. Você pode impor condições de trabalho. Cada leitura, cada filme visto são estudos. Hoje em dia, com a peça, estou lendo muito menos. Leio com mais calma. Agora estou lendo a biografia de Al Pacino. Para o ator, ele diz algo importante: coisas que os diretores pedem e que os atores não sabem. Não preciso saber tudo e ser um gênio. Sou humano, com todos os erros, defeitos e virtudes. Eu sei o que sei que sei. Pacino diz: “Você vai dançar tango… Sim. Mas primeiro entenda o que é (a palavra) tango”.
Você imortalizou o Padre Antônio Vieira (em Os sermões), estudou filosofia e tem ligação com a espiritualidade. Citar Chico Xavier significa algum compromisso?
Menciono pessoas com quem tenho alguma ligação. Ele está sempre ensinando. Você precisa entender os outros, entender os outros, ser amigo dos outros, não se esqueça: você é o outro de alguém. Espiritualidade é estar sempre aberto para conversar e compreender as pessoas. Isso é o melhor. Se ganhei talento, se Deus me deu talento, não posso mantê-lo trancado dentro de mim. Eu tenho que compartilhar isso com outras pessoas. É isso que faço na minha peça. Não guardo isso para mim, não quero me trancar em um castelo. Fernando Pessoa diz: “Pedras no meu caminho, coleciono todas; Um dia construirei um castelo.”
No Nordeste do patriarcado você viveu o icônico personagem de São Bernardo, mesquinho ao extremo. Como a riqueza de um Ariano Suassuna o afeta?
São Bernardo é um ótimo filme, mas eu sou a favor de Ariano Suassuna. Suas palestras eram lindas. Foi um show: ele falou, criticou, elogiou e foi fantástico. Não quero me retirar e ficar trancado dentro de mim. Você tem que ser livre para ser livre. Como você vai ajudar alguém se não ajuda a si mesmo? Plotino, um filósofo extraordinário, disse o seguinte: “É preciso sempre ter tempo para fazer uma visita constante a si mesmo”. Jung diz uma coisa linda: você não é responsável pelas coisas que acontecem com você. Você é responsável pelas coisas que escolhe para si mesmo.
Como você percebe a moderação absoluta no mundo atual e como percebe o desejo de revisões de obras renomadas?
Desculpe, isso é uma loucura. Cada pessoa vive em uma determinada realidade. É preciso saber qual foi o motivo de cada pessoa produzir ou criar a obra. Como dizer coisas ruins depois? No momento, o artista estava alerta e forte, lutando pelos seus ideais. Como você julga as pessoas? Além disso, quem é você para julgar alguém? Não há nada pior do que julgar. Por que não sentar na frente do espelho, conversar consigo mesmo e sobre você e se julgar?! Sente-se em frente ao espelho e pergunte: “Espelho, quem sou eu?” O espelho lhe responderá: “Suas escolhas”.
Sua vitalidade é impressionante, assim como sua memória. O que te torna tão saudável, a ponto de parecer não ter limites?
Não há limites, não (risos). Eu até rio. Eu era um atleta. Quando eu era jovem, fui atleta do Vasco da Gama, quando era — como sou até hoje — Botafogo. Como atleta do Vasco, tive que competir contra o meu clube (risos). Sempre fui atleta: tudo me deu força, saúde e alegria. A vitalidade me foi dada por Deus. Chegue aos 91 e faça o que estou fazendo. Muitas pessoas podem fazer a mesma coisa! Perguntaram a Clint Eastwood: “Como é que, na tua idade, andas a cavalo, disparas, entras num bar?…” Ele disse: “Muito simples; De manhã, quando eu levanto, eu rezo e rezo, e digo baixinho — ‘Deus, meu Deus, não deixa a velhice entrar, não deixa’ (risos)”. Essa vitalidade está na vida das pessoas. Acho que muitas pessoas estão ficando muito mal-humoradas. Quero dizer, na peça isso é sério – as pessoas ficaram com medo de viver. Você tem que viver! Em vez de ser alérgico à vida, é preciso ter alegria de viver.
Como alguém que teve o desejo, no passado, de ser piloto, você acredita em mudar o rumo ao trabalhar em trabalhos audiovisuais abertos, como na TV? Você é muito autocrítico?
No jogo, o grande problema é não conseguir se cadastrar. Como disse Plínio Marcos: “O problema é que o ator de teatro não tem nada registrado nem documentado”. Eles me perguntaram: “você sabe o que está fazendo no palco. Você tem alguma ideia do que está fazendo? Eu sou incapaz; Eu ouço o que as pessoas me dizem sobre o que eu faço. Não sei o que estou fazendo, faço o que acho que devo fazer. Não há cena de filme, não há cena de televisão que eu assista depois de fazer isso. Se você pensa em corrigir; Dependendo de como você está na vida, você dirá “vamos fazer de novo” e continuará fazendo isso por toda a vida. O que você fez naquele momento, ali (no palco), o que você sentiu e conseguiu transmitir está pronto, ali. Impresso.
Glauber Rocha, Leon Hirszman, Ruy Guerra, Walter Salles, Fernanda Montenegro e Walter Lima Jr. Como você interagiu com parceiros tão vigorosos nas artes?
Tudo que é bom você absorve do outro, das conversas, seja com o Leon, com o Glauber, com o Walter. O encontro com a Fernanda no filme Central do Brasil foi lindo. Ali aconteceu alguma coisa: Walter Salles nem sabia se sabia. Mas fui chamado e me colocaram na frente de uma câmera e falaram comigo, para fazer, como se eu estivesse fazendo um teste. Quando percebi que era um teste, perguntei por que você não disse que era um teste? Marlon Brando fez o teste para O Poderoso Chefão. Grandes atores podem fazer (testar). Não há necessidade de se esconder e humilhar. Disseram: “Queríamos saber como seria a sua figura ao lado da Fernanda Montenegro…” Pelo amor de Deus não é assim!
Como você sente que desenvolveu sua carreira?
Não tenho dúvidas: você é o que era. Saber escolher é importante. Foi o que aconteceu comigo, do Deus e do diabo na terra do sol. Eu não ia fazer o filme, outro ator faria. Entrei por acaso – um grande amigo meu é o acaso. Depois que fiz o filme do Glauber, se eu quisesse, ainda hoje estaria interpretando um bandido na tela. Mas isso não me interessava: fiz bandido e nunca mais fiz outro. Na minha vida sempre faço assim. Paulo Honório, um trabalho extraordinário que desenvolvi com o diretor Leon Hirszman, inteligente, extremamente preparado e altamente educado. Conversei bastante com ele, só ouvindo a pessoa, você toma um gole e seleciona. Não vou entrar em polêmica. As pessoas têm o direito de ser quem são. Eu não quero mudar as pessoas. As relações humanas são isso: você pode andar na mesma calçada, mas não precisa ser dono do mundo do outro. Você participa do mundo da outra pessoa, mas não é dono do mundo da outra pessoa. Dessa forma, você se torna uma pessoa agradável de se conviver. Não tenho intenção de corrigir o mundo nem quero que o mundo me corrija. Me vem à mente a linda canção de Paulinho da Viola: “Não sou eu quem me navega/É o mar quem me navega”.
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