Sempre conhecido como o “vampiro de Curitiba”, autor que empreendeu uma busca quase obsessiva pela brevidade e atento observador e narrador do cotidiano de uma classe e de uma cidade, Dalton Trevisan morreu nesta segunda-feira, aos 99 anos, em Curitiba. Autor de mais de 50 livros e ícone da literatura brasileira, Trevisan ficou conhecido pela aversão à imprensa e pelo domínio de uma escrita que combina o terror com o erotismo beirando a pornografia, sem nunca se desviar do humor.
Nascido em Curitiba em 14 de junho de 1925, era filho do proprietário de uma fábrica de louças e vidros, na qual trabalhava, mas foi durante o curso de Direito na então Faculdade do Paraná que começou a escrever e publicar contos em edições artesanais distribuídas aos colegas, prática mantida ao longo de toda a sua vida. O primeiro livro, Sonata ao Luarde 1945, foi repudiado pelo autor. Somente em 1959 escreveu o que considerou seu primeiro livro, Histórias que não são exemplarese um pouco mais tarde, em 1964, deu forma ao Cemitério de elefanteso primeiro livro a chamar a atenção no cenário literário nacional, uma coletânea de contos que aliam o cenário rural a uma ironia dirigida ao mundo patriarcal.
Mais tarde, eles viriam O vampiro de Curitiba (1965), uma coletânea de 15 contos que valeu ao autor o apelido, e A bolinha (1985), único romance de Trevisan e, como ele disse, o mais pornográfico. Grande parte da obra está disponível no catálogo da editora Record, que lançou, em 2023, Antologia pessoaluma coletânea de 94 contos selecionados pelo próprio autor e com prefácio de Augusto Massi, uma espécie de iniciação na obra do vampiro para novos leitores. A coleção reúne textos do primeiro livro, Histórias que não são exemplarese de O beijo na nucaa partir de 2014. Trevisan tinha assinado contrato com a editora Todavia, que, a partir de 2025, publicará livros com edições especiais por ocasião do centenário do autor.
Entre os prémios acumulados estão os mais importantes da literatura de língua portuguesa: Camões, Machado de Assis, Oceanos e Portugal Telecom. No entanto, Trevisan não compareceu à cerimônia de entrega de praticamente nenhum. Avesso à vida pública — a última entrevista foi concedida em 1972 — não foi totalmente recluso e viveu toda a vida numa conhecida casa, na esquina entre as ruas Ubaldino do Amaral e Amintas de Barros, em Curitiba, de onde se mudou. apenas nos últimos anos. Frequentava livrarias de rua da capital paranaense e, até recentemente, ainda escrevia e oferecia edições caseiras para amigos e conhecidos. Entre 1946 e 1948, o escritor também editou a revista Joaquim. Dedicada à literatura, publicou textos de autores como Antonio Cândido, Otto Maria Carpeaux e Mario de Andrade.
Professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), Alexandre Pilati lembra que Trevisan ocupa um lugar único no cenário da literatura brasileira do século XX. Ele é dono de um realismo elevado à excelência, segundo Pilati, e responsável pelo desenvolvimento de uma linguagem muito particular. “Dalton se distingue por sua operação linguística, baseada na estilização muito consistente de um certo discurso popular provinciano paranaense, que, em suas mãos, se amplifica como arma crítica e implica a franja da sociedade rural/urbana em cáusticas etapas da modernização conservadora do país”, explica o professor. “Ele é mestre em construir personagens típicos, únicos e sempre iguais, imersos em uma vida narrada com cores irônicas cujas marcas são a decadência, a violência, as desavenças, as perversões, a esperança frustrada. rir e fazer as pessoas pensarem com delicadeza e terror.”
Vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos, autor de Arado tortoItamar Vieira Jr. lembra que Trevisan se tornou referência por transformar narrativas curtas em um robusto projeto literário. “Quando refletimos sobre a sua trajetória, e a escolha que fez pelo conto, que é ao mesmo tempo desafiadora e subestimada, podemos dizer que Trevisan é, sem sombra de dúvida, um dos maiores autores da língua portuguesa”, diz Itamar. O contista e jornalista José Rezende Jr., autor de Histórias mínimas e Perguntei ao velho se ele queria morreraponta a concisão e a estrutura dos textos de Trevisan como fundamentais. “Ainda na minha juventude fui seduzido pela concisão da linguagem, pelos diálogos precisos, pela descaramento dos personagens de Dalton Trevisan. Naquela época, eu nem sonhava em ser escritor, e não sei o quanto meu a escrita foi alimentada pelo seu trabalho, mas ouso dizer que, consciente ou inconscientemente, todo bom contista bebeu um pouco do sangue do vampiro curitibano”, afirma.
Para o gaúcho Michel Laub, autor de O diário de outono e A maçã envenenadaum dos fascínios do curitibano é o fato de ser um autor radicalmente fiel ao seu universo. “E ele ter mantido isso por 50, 60 anos, e nunca ter caído de nível em termos estéticos, é um feito raro”, diz Laub, que também se sente influenciado pelo trabalho do vampiro na medida em que a busca pela concisão é um objetivo narrativo. “Faz parte de uma tradição à qual provavelmente pertenço, que é a do texto mais conciso, avesso a enfeites beletristas. Dalton usa esses enfeites às vezes, mas sempre de forma irônica, o que inverte seu sentido na frase, no conto”, explica. A concisão, a tensão da linguagem e um sentido poético que opera de forma duvidosa fazem do autor o que Laub chama de um “corpo estranho” muito bem-vindo. “Ele se opõe à moda da ficção inspiradora, com boas intenções, de qualquer tipo. Isso ocorre não por alguma iconoclastia juvenil, mas porque a natureza desta obra – que está em sua forma, antes de tudo – sempre foi esta, mesmo lá no começo, nos primeiros livros”, analisa.
Para o crítico Anderson Luis Nunes da Mata, professor do Instituto de Letras da UnB, Trevisan é um caso cujo talento foi celebrado em vida graças à sua longa carreira e inúmeras obras, além de ser um nome incontornável da literatura brasileira contemporânea. Mata lembra que teve a sorte de ser contista nas décadas de 1960, 1970 e 1980, quando o gênero ganhou espaço nas editoras, nas revistas e no gosto do público. “Suas narrativas, que exploram com extrema acidez – e às vezes até excessivo cinismo – os costumes de uma classe média urbana, nunca se esquivaram de tocar em temas polêmicos, abrindo espaço nas narrativas para vozes incômodas como, por exemplo, a misoginia e a racismo, dentro da liberdade da ficção Porém, mais do que os temas, a forma sempre foi o que chamou a atenção na obra de Trevisan, pelo uso ágil do diálogo e pela concisão na construção dos conflitos em um jogo que. parece simples, mas verdadeiramente complexo, de suspensão moral e de desvelamento das perversidades (e perversões do ser humano)”, afirma o professor.
Reunião impossível
Entrar em contato com Dalton Trevisan não foi difícil; era impossível. Mas através de um desses golpes de sorte dados pelos deuses da literatura, o impossível tornou-se possível para o brasiliense José Salles Neto, presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Um integrante da Confraria conheceu Eleutherio, dono de uma pequena livraria de rua em Curitiba, frequentada por Dalton Trevisan, que trazia pequenos livros de seus contos em edição artesanal para serem distribuídos aos leitores que realmente amavam a ficção do Vampiro de Curitiba.
Salles queria publicar uma antologia de contos. Eleutherio estava disposto a fazer a ponte. Mas Dalton respondeu, com veemência, que só aceitaria se fosse a novela A bolinhaa mais pornográfica de suas obras, usada no vestibular e censurada em Curitiba. Salles estava nervoso, com medo de perder muitos dos membros mais conservadores da Irmandade. Mas concordou e convidou o artista gráfico Darel Valença Lins, que ilustrou as crônicas de Nelson Rodrigues em Última Hora. “Foi o livro mais bonito publicado na Confraria, pesa cerca de quatro quilos”, comenta Sales.
O livro está atualmente esgotado e custa entre R$ 4 mil e R$ 6 mil em sebos. Dalton ficou tão feliz que enviou uma longa dedicatória nos livros artesanais que publicou, endereçada a Salles, na qual dizia: “Essa foi a maior homenagem que recebi na vida”. Apenas uma integrante de 70 anos saiu da Irmandade, porque seu marido, de 80 anos, ficou escandalizado com o que considerou conteúdo pornográfico: “A mulher me ligou e disse que o marido exigiu que ela saísse da Irmandade”.
Como leitor, Sales considera a concisão a principal qualidade de Dalton. Ele brinca que seus contos são romances: “Não há contista que se compare a Dalton nesse aspecto de escrever contos com cenário de romance. Ele dominou a concentração da escrita como ninguém”.
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