Crítica // Maria Callas ★★★★
Em meio ao burburinho das frituras na cozinha de uma casa suntuosa, a voz calejada de uma soprano passa por avaliação. Testemunha dos dias de glória do patrão, a governanta Bruna (Alba Rohrwacher), um tanto desatenta, julga a voz posta à prova: “magnífica”, demarca para ninguém menos que Maria Callas (Angelina Jolie, muito qualificada para o papel). Mesmo longe do cenário operístico, a diva cantora guarda a lembrança de que “o palco” é cunhado “na mente”. Mas a narrativa do filme com roteiro de Steven Knight, dirigido por Pablo Larraín, presta-se a registrar o declínio e a luta pela reconstrução da vida de Callas (com muita sede de um eventual retorno).
Com este terceiro filme sequenciado, é possível dizer que Pablo Larraín se encontrou nas nuances dos registros das musas. Ele já nos contou sobre Jacqueline Kennedy e a Princesa Diana. Cada espaço vazio na cena é preenchido com delírio ou progresso da história – e assim é Maria Callas. A música a aproxima do sofrimento e Callas parece não querer mais nada. Ambientes frios e inóspitos convidariam muitos à ostentação vazia, mas, sempre confusa e inalcançável, a soprano de tela idealiza maior convivência e cordialidade.
Para Callas a vida “além dos palcos” não existia e por isso ela luta para fortalecer alianças, principalmente com aqueles que nunca a abandonaram, como a governanta Bruna e o mordomo Ferruccio (Pierfrancesco Favino). A renovação, no passado, foi tecida pelo desejo de ser “menina de novo”, a ponto de tolerar o amor de um bruto como Aristóteles Onássis, rude, a cada aparição, deplorando a figura de Marilyn Monroe e do presidente John F. Kennedy. Em outra linha, de enaltecimento de um legado, Angelina Jolie compôs uma personagem sólida, inclusive com sua voz mesclada com a da cantora original. Cinderela (por Rossini), A traviata (por Verdi) e Ana Bolena (por Donizetti).
Onassis é quem enfatiza para Callas que “ninguém se importa com a voz (de Monroe) assim como ninguém se importa com o corpo (de Callas)”. O filme de Larraín explora essa alma abalada, capaz de ir a um restaurante para ser adorada (em compensação). Elegante, a diretora emprega a gentileza que a protagonista parecia não guardar para si, ao tratar de temas delicados como os indícios de quase prostituição que ameaçavam a diva na juventude. Autodeterminado, o personagem foge da ideia do amor como “posse” ou “pertencimento”.
Paris, por onde Callas viaja, aparece como personagem coadjuvante, enquanto os remédios aparecem quase como protagonistas. Mandrax (substância que ainda dá nome ao personagem Kodi Smit-McPhee, um entrevistador imaginário) entra na linha de frente. Quando questionada sobre (o remédio) que tomou, Callas diz: “Eu (tomei) liberdades com a vida”. Felizmente, Larraín também toma liberdades, mas com a narrativa. O assédio e a aclamação desaparecem, e o que resta é a solidão, o toque de loucura e as múltiplas visões que desorientam e corroboram o mito. Pablo Larraín, finalmente, é coroado como o mestre dos estertores da fama.
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