Ao longo de três anos, jornalista e escritora paulista desvendou a vida de Rita de Cássia Coutinho, mulher madura, considerada idosa por ter ultrapassado os 60 anos, dona de casa, mãe, avó e moradora da movimentada Santa vizinhança. Cecília, no coração de São Paulo, local onde está sempre passeando, seja nos vários passeios diários com seu poodle Pietro, seja nas compras no mercado, na farmácia, no açougue. O trabalho de Flávio Queiroz foi condensar em um livro, previsto para dois volumes, a história dessa senhora que, aparentemente, teria um enredo tão trivial quanto o da nossa vizinha de rua. Sua obra, porém, lançada pela editora Gregory em 2022, traz na capa a imagem de um ícone da indústria do entretenimento.
A ex-chacrete Rita Cadillac é um manuscrito emoldurado de capa dura repleto de tantas histórias que, se todas fossem contadas, formaria uma Bíblia. Mas o autor, Flávio — também responsável pela biografia de Nany People — conseguiu trazer as 183 páginas de seu Rita Cadillac: frente e verso um resumo dos principais episódios da carreira da assistente de palco de Chacrinha mais famosa do país: como ela apareceu no programa, recebeu seu famoso apelido (inspirado no astro francês de mesmo nome), estrelou produções de cinema e TV, namorou personalidades importantes, levou alegria aos garimpeiros de Serra Pelada, tornou-se madrinha dos internos do extinto Carandiru, protagonizou filmes da indústria adulta, participou duas vezes do mesmo reality show, A Fazendae deu voz ao hit É bom para o moral.
Essas narrativas, conhecidas do grande público, fazem parte do Versículo apresentado no título. Uma mulher que fez sucesso e até hoje é reconhecida por sua bunda — que, nas palavras de sua homônima e falecida amiga pessoal Rita Lee, é a única em quem ela sabia que pensava. Mas a presença do ídolo de várias gerações ao longo dos últimos 50 anos é o que diferencia Cadillac das demais musas daquele erotismo que deu o tom no final do século passado. Rita — a de Cássia — é real, de carne e osso e muita humanidade.
A mulher comum, que passeia pelas calçadas da Rua Canuto do Val, completou, no dia 13 de junho — Dia de Santo Antônio — 70 anos de uma vida bem vivida, mas sem acumular riquezas, esbanjando glamour e, sobretudo, longe de ser imortal. Ela é simples no vestir, amigável no andar, gentil no trato com aqueles que se aproximam dela. Ela é gente como nós. Mas, acima de tudo, ela chega hoje com o maior orgulho de dizer: é uma mulher empoderada, dona de si e dos seus desejos. Ela soca o preconceito de idade com mãos fortes e esmaga o machismo com seus saltos altos. Para ela, isso é bom para o moral.
Das festas aos casamentos
Ao contrário do que se poderia supor, o trabalho de Rita Cadillac não ficou no passado, juntamente com o vigor da juventude. A avó de Bianca, 27, e Larissa, 15, não está no auge da carreira, mas sobrevive — “muito bem, obrigada” — do trabalho. Após o período turbulento da classe artística devido à pandemia de covid-19, que encontrou o artista retornando de uma turnê por Santa Catarina, Rio de Janeiro e Espírito Santo no início de 2020, a agenda voltou a estar repleta de acontecimentos: como como apresentações privadas e em casas noturnas de todo o Brasil, paradas do orgulho gay e trios elétricos carnavalescos —tanto os blocos de Salete Campari e Cecílias e Buarque, dos quais é madrinha, quanto os do Monobloco e Pabllo Vittar, para os quais foi contratada , com taxa e tudo.
Com o seu glorioso trabalho, Rita Cadillac anima até festas de empresa, aniversários e casamentos. No próximo final de semana, por exemplo, a musa será a surpresa da noiva para o seu amado na festa de casamento do casal. No mês passado, a ex-chacrete foi atração do aniversário de 50 anos de uma fã curitibana —a mesma que a contratou há uma década, para seus 40 anos. Já a dela, este ano, não terá grande comemoração. Algum tipo de depressão por completar sete décadas de vida? O que nada! A mulher de Gêmeos está se sentindo tão plena que, em suas palavras, “é como estar na casa dos 20 anos”.
Só que Rita de Cássia, diferentemente do seu alter ego, não gosta de baladas. Ela adora estar em festas, comemorar com os amigos, mas prefere ir a um restaurante ou bar bater um papo. “Nunca gostei de balada. Só quando uso a roupa do Cadillac”, explica. Lá, ela encarna a diva imperecível e se joga no palco para comemorar com o público que costuma lotar os espaços onde se apresenta. Ela chega aos 70 anos sem ingerir bebidas alcoólicas —mesmo fumando e bebendo muito café— e ainda trabalhando com o corpo. E ela não sente vergonha do que faz.
“Nem morta”
A pandemia veio também para mostrar a Rita que não vale a pena se privar de nada porque ela valoriza a opinião dos outros. Afinal, quando ela ficou isolada em casa, com medo de ser infectada e ir embora como tantos amigos queridos, buscando um sopro de vida em vidas despretensiosas, pouquíssimas pessoas a acolheram. A partir daí, ela tomou a decisão: “Eu sou dona do meu testamento. PT Saudações”.
Hoje, Rita Cadillac também encontra fonte de renda em plataformas de conteúdo adulto. Ao contrário do sentimento que a atormentava no início dos anos 2000, quando protagonizava produções sexualmente explícitas “para poder ter uma propriedade própria e também dar um teto ao filho”, agora este trabalho faz mais sentido, graças ao autonomia que ela adquiriu para produzir apenas o que não lhe faz mal. Além de liderar sua própria equipe, você tem o direito de recusar pedidos de assinantes, como fazer um ensaio erótico em um cemitério. “Nem mesmo morto”, ela avisa.
E não é apenas ao fetiche bizarro que ela diz um sonoro não. Solteira por convicção, Rita também não abaixa a cabeça diante de nenhum homem que tente dominá-la e não aceita capitalizar as causas que abraça — como a proteção animal, a defesa dos direitos da comunidade LGBTQIAPN e situações inesperadas, como a tragédia no Rio Grande do Sul, para onde gostaria de ter ido ajudar no local, mas só conseguiu enviar dinheiro através da neta que mora em Porto Alegre. “Ninguém precisa saber. Essas obras são da Rita de Cássia”, argumenta.
Rita também se recusa a submeter-se a procedimentos estéticos invasivos. Com todo o respeito aos meus colegas que se renderam ao mercado de bisturi e agulhas, o Cadillac que as pessoas verão no palco, na TV e na internet não será o mesmo de duas ou três décadas atrás. Ser natural, com marcas de expressão que revelam seu passado de glória e dor, não diminui em nada o seu apelo. Pelo contrário: atualmente, tem cada vez mais assinantes na faixa dos 20 anos. “Uma menina que nasceu quando eu já era avó”, conclui, um pouco encantada, a memorável ex-chacrete.
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