O gasto anual dos cofres públicos brasileiros com custos gerados pelas bebidas alcoólicas atingiu a marca de R$ 18,8 bilhões em 2019, segundo dados levantados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) a pedido das organizações Vital Strategies Brasil e ACT Promoção da Saúde. O estudo mostra que o álcool é responsável por 12 mortes por hora no Brasil.
Os custos diretos relacionados às bebidas alcoólicas — internações e procedimentos ambulatoriais — são responsáveis pelo consumo de R$ 1,1 bilhão do Sistema Único de Saúde (SUS) em 2019. Os custos indiretos relacionados ao consumo excessivo de álcool chegam a R$ 17,7 bilhões e envolvem desde gastos com Assistência Social Segurança — licenças médicas e aposentadorias precoces — à perda de produtividade, como presenteísmo (quando o funcionário está no local de trabalho, mas não tem 100% de dedicação), absenteísmo (medida de recursos humanos para número de faltas ao trabalho) e prematuros mortes.
Ainda em relação aos gastos indiretos gerados pelas bebidas alcoólicas, estima-se que o custo previdenciário relacionado atingiu R$ 47,2 milhões em 2019. O público masculino é responsável por 78% desse total, o equivalente a R$ 37 milhões. As mulheres representam o montante de R$ 10,2 milhões.
Pedro de Paula, diretor da Vital Strategies Brasil — uma das organizações que solicitaram a pesquisa — explica que o objetivo do estudo é conscientizar as pessoas sobre os malefícios do álcool e, consequentemente, cobrar dos representantes políticos um movimento que gire em torno o desenvolvimento de políticas públicas de combate ao abuso de álcool. “92% da população brasileira apoia que o governo tome medidas para reduzir os efeitos nocivos do álcool. 62% apoiam mais impostos para aumentar o preço do álcool. Então é muita coisa num país tão dividido politicamente”, comentou.
A reforma tributária também é vista com bons olhos pelo diretor da organização, que acredita que a tributação “é a medida mais eficaz no curto prazo para reduzir adequadamente o consumo”.
Pedro também compara a situação atual da indústria de bebidas alcoólicas com o que foi a briga econômica e publicitária que envolveu a indústria do tabaco na década de 1990. “Temos uma oportunidade geracional, tal como tivemos com o tabaco há alguns anos. 20 anos, de mudança nas condições regulatórias que incentivam o consumo de uma substância que gera muitos problemas, muitos custos, muito sofrimento”, afirmou o executivo.
Mortes
O estudo da Fiocruz, intitulado “Estimativa dos custos diretos e indiretos atribuíveis ao consumo de álcool no Brasil”, mostra também que, em 2019, as bebidas alcoólicas foram responsáveis por ceifar cerca de 105 mil vidas no Brasil. O levantamento foi baseado em dados de mortes relacionadas a doenças cardiovasculares.
Pesquisas internacionais estimam que 1% a 3% do PIB (produto interno bruto) dos países é gasto com esse medicamento. Segundo a pesquisa, no Brasil a perda gira em torno de 0,25%. “É gigantesco, de qualquer forma”, lamentou o executivo da Vital Strategies.
Eduardo Nilson, pesquisador da Fiocruz e autor do estudo, afirma que os maiores custos e as maiores causas de mortalidade são as doenças cardiovasculares e o câncer. “Não existe nível seguro de consumo de álcool no Brasil. Portanto, qualquer nível de consumo representa risco e existe uma relação dose-resposta que é incorporada ao nosso modelo. Na verdade, mostra precisamente que quanto mais você consome, mais aumenta o risco de todas as doenças. […] Estamos num ponto em que o álcool ocupa o lugar que o tabaco ocupava no passado”, relatou.
Políticas públicas
De Paula reforça ainda que a principal recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para controlar o consumo de álcool é a tributação. Segundo ele, além de reduzir despesas, diminui a carga do sistema de saúde. “Não são apenas os gastos que oneram o sistema de saúde, é a sua incapacidade de atender a todas as demandas para cuidar da presença de doenças crônicas e infecciosas.”
“Portanto [a tributação]se pudermos prevenir, estamos dando espaço a outras pessoas que não tiveram a chance de ter um câncer “prevenível”, por exemplo. Tratados adequadamente com recursos públicos, deixaremos de competir no sistema público pelo lugar dessa pessoa. Isto é fundamental. É isso que o governo deveria fazer”, acrescentou.
Deputado federal Jorge Solla (PT), relator do projeto de lei nº. 1.812/2019 — que instituiu o Dia Nacional de Prevenção ao Uso e Abuso do Consumo de Bebidas Alcoólicas (06/10), — concorda com De Paula e Nilson. Na sua opinião, é necessário discutir a regulação da publicidade, limitar o acesso em áreas sensíveis e apoiar programas de reabilitação, ampliando o acesso a estes serviços de saúde para a população mais vulnerável.
“Um modelo sustentável seria reverter parte dos impostos sobre bebidas alcoólicas para financiar campanhas de conscientização e ampliar o acesso a serviços de apoio e tratamento. Dessa forma, garantiríamos que a tributação também gerasse benefícios concretos para a sociedade, qualificando a atenção básica e também para as doenças de média e alta complexidade relacionadas ao consumo de álcool”, explicou o deputado.
Questionado por Correspondência Sobre a possibilidade de a indústria de bebidas alcoólicas aderir pacificamente às políticas públicas de redução do consumo de álcool, o diretor da Vital Strategies explica que o setor aprendeu “muito bem com o tabaco”. “Antecipou as medidas mais duras e comportou-se de uma forma menos explicitamente complexa, ou má. Escuro, na verdade. Como foi [a indústria] tabaco”, comentou.
Nilson, por sua vez, destaca que o conflito de interesses que existe entre as indústrias e as políticas públicas a serem desenvolvidas impossibilita que algo de positivo seja feito. “Muitas vezes são propostas medidas voluntárias, por exemplo, que são muito ineficazes, pouco aplicáveis e nem acabam por mitigar o problema. Na verdade, adiam decisões que poderiam, de facto, ser tomadas de forma regulatória”, explicou.
O estudo da Fiocruz mostra ainda que a principal faixa etária atingida são as pessoas em idade produtiva, de 40 a 60 anos. Este grupo tem maior incidência no atendimento ambulatorial, com 55% dos custos relativos às mulheres e 47,1% aos homens. O deputado Jorge Solla acredita que uma das soluções eficazes é a criação de legislação específica voltada para a educação e prevenção do abuso de álcool.
Além disso, Solla defende a criação de um programa nacional que promova a educação sobre bebidas alcoólicas desde tenra idade, com campanhas contínuas de sensibilização, apoio aos toxicodependentes e formação de profissionais de saúde. Segundo ele, o problema seria abordado de forma abrangente, desde a prevenção até o tratamento e reintegração dos atingidos.
Efeitos psicossociais
A pesquisa da Fiocruz também indica relação direta entre o consumo abusivo de álcool e casos de violência — especialmente doméstica —, crimes e incidentes de trânsito. De Paula reforça que as políticas públicas voltadas ao combate ao abuso do álcool têm “a possibilidade de ser uma política, sobretudo, que reduza as desigualdades estruturantes da nossa sociedade”.
Nilson reforça que, apesar do componente social relacionado aos acidentes de trânsito, à autoviolência e à violência interpessoal, também é preciso olhar para os custos do Sistema Único de Saúde. “Quando a gente olha a questão dos custos para o SUS, da população que depende do SUS, já temos uma carga muito grande, que já tem uma visão, do ponto de vista social, também em termos de renda.”
“Trabalhamos apenas com a Segurança Social Oficial, por isso não sabemos o impacto quantificado, por exemplo, nos trabalhadores informais, onde há uma questão económica e social ainda mais forte. […] Então, traz uma carga social muito grande, além, claro, daquilo que estamos a trabalhar em termos de doença e mortalidade prematura, que afeta as famílias, afeta a vida de todos, e sobretudo, afeta a própria economia”, explicou. . .
O psicanalista Artur Costa, professor titular da Associação Brasileira de Psicanálise Clínica (ABPC), afirma que, muitas vezes, o consumo de álcool representa uma busca por gratificação imediata, “uma forma de entorpecer o sofrimento psicológico e preencher um vazio interno”. “Com o passar do tempo, o reforço negativo começa a predominar: a pessoa bebe para evitar o sofrimento, o desconforto e a angústia que surgem na ausência do álcool, criando um ciclo de dependência. Essa dinâmica é reflexo do conflito entre o princípio do prazer e a realidade psíquica do indivíduo”, explicou.
O consumo crônico de álcool provoca alterações profundas na estrutura da personalidade do indivíduo que abusa da substância. Assim, ele se torna mais impulsivo, ansioso e emocionalmente instável, segundo Costa.
O especialista defende ainda a criação de programas de sensibilização emocional nas escolas e de campanhas educativas que abordem o impacto do álcool no psiquismo, afirmando que podem ser ferramentas importantes para ajudar os jovens a evitar o uso do álcool como forma de lidar com dificuldades emocionais.
“Os fatores de risco psicológico para o alcoolismo incluem sentimentos de baixa autoestima, traumas infantis, dificuldades em lidar com emoções negativas e padrões familiares de abuso de substâncias. Os jovens podem ser especialmente vulneráveis, pois estão em um período de formação identitária e enfrentando pressões sociais”, acrescentou o professor da ABPC.
*Estagiário sob supervisão de Andreia Castro
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