Discutida há 40 anos, a reforma tributária foi finalmente aprovada em 2023. O novo sistema tributário só começará a funcionar plenamente em 2033. Mas até lá, a União, os estados, os municípios, as empresas e os consumidores terão que se adaptar às novas regras, que ainda estão em discussão no Congresso Nacional. Durante este período, serão feitas regulamentações para alterar o sistema tributário.
A reforma tributária sobre o consumo, prevista na Proposta de Emenda à Constituição 45, de 2019, trouxe a substituição de cinco tributos pela dualidade do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) — tributo federal — e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (IBS), dos estados e municípios. Contudo, tal como outras alterações constitucionais, para que o novo sistema funcione, é necessário aprovar leis que regulem as alterações. Ou seja, detalham como funcionarão as novas regras, quem as aplicará, quem as fiscalizará e quem está sujeito a elas.
Para tanto, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviou dois textos ao Congresso: o Projeto de Lei Complementar (PLP) 68 e o PLP 108, ambos de 2024. O Legislativo aprovou o primeiro texto poucos dias antes do fim do trabalho do Legislativo em dezembro passado.
Entre os principais pontos previstos no PLP 68 está a criação do cashback, que consiste na restituição de tributos para consumidores de baixa renda cadastrados no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo .
O PLP 68 também traz regras para o período de transição; a isenção de proteínas (carnes, frango e peixes) da cesta básica e o funcionamento do Imposto Seletivo, que incidirá sobre produtos considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente, conhecido como “imposto do pecado”. Produtos como refrigerantes, bebidas alcoólicas e cigarros serão cobrados à parte. Há também regras para tributação de operações imobiliárias e isenção para nanoempreendedores (com renda bruta anual inferior a R$ 40,5 mil) e motoristas de aplicativos.
A nova regra inclui também o Comitê Gestor do Imposto sobre Mercadorias e Serviços (CG-IBS), que irá arrecadar e distribuir recursos aos estados e municípios, além de compensar débitos e créditos no sistema e interpretar a legislação para aplicar corretamente as regras. Inicialmente, a criação desse comitê estava prevista no PLP 108. O governo e o Legislativo, porém, decidiram antecipar essa medida para que o colegiado pudesse começar a funcionar ainda este ano, a fim de dar mais tempo de adaptação ao Comitê.
“Espinha dorsal”
A aprovação dessa regulamentação, mesmo com a desidratação causada pela pressão de diversos setores da sociedade, foi vista pelo governo Lula como uma vitória. Durante a votação no Senado, o secretário extraordinário de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, disse na época que a equipe econômica gostaria que o PLP 68 tivesse sido aprovado com menos “exceções”, mas afirmou que o governo ficou satisfeito porque a “espinha dorsal” da reforma foi mantida.
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No Senado Federal, o texto foi relatado pelo senador Eduardo Braga (MDB-MG). Ao retornar à Câmara, o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) voltou a informar o texto para aceitar ou rejeitar as alterações feitas pelos senadores. Ele reverteu algumas mudanças, inclusive a redução das exceções incluídas no Senado, e o texto foi aprovado. Em entrevista ao Correio, o parlamentar, que comemorou a aprovação e destacou os benefícios que o novo sistema terá, destaca a importância dessa reforma.
“É o maior fato histórico do ponto de vista de mudança estrutural para a economia brasileira. É a maior mudança estrutural dos últimos 60 anos. Porque corrige enormes distorções no sistema tributário sobre o consumo que levaram o Brasil a ser um país principal economia exportadora. [O atual sistema] criou um sistema tributário que impede o Brasil de ser competitivo, de ganhar produtividade. Porque cobra impostos”, diz Reginaldo Lopes.
Para o deputado, o fato do sistema brasileiro ser comparável aos sistemas tributários das economias desenvolvidas que já possuem IVA colocará o país em uma condição mais competitiva. “O Brasil vai passar do pior sistema para o melhor sistema, que é o parcelamento, um sistema que é uma espécie de Pix fiscal. Cálculo, arrecadação, distribuição automática de receitas. Isso é uma modernização tecnológica extraordinária”, diz Lopes. “E vai acabar com a evasão fiscal, a fraude e a inadimplência. Porque hoje o imposto fica escondido de dentro, o cidadão paga, não sabe quem está pagando, a indústria, pela insegurança jurídica, toma medidas legais para tudo no Cade, nas procuradorias-gerais da Fazenda Federal dos estados, dos municípios e da União, e isso cria essa confusão”, completa.
Para o relator, o governo do presidente Lula precisa conversar sobre o assunto para que a população compreenda os benefícios da reforma. “Isso é algo para comemorar, acho que o governo precisa falar mais sobre isso. (…) É um conjunto de ganhos para a sociedade, para a economia e para a justiça tributária”, afirma Lopes.
Quem também comemorou a aprovação foi o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Após votar o pacote de corte de gastos e encerrar os trabalhos na Câmara em 2024, o parlamentar fez um balanço de sua gestão e destacou a importância da aprovação da reforma tributária.
“Reforma tributária, para acabar com o manicômio tributário, facilitar a situação de segurança jurídica, dar previsibilidade, simplificar a forma como as coisas são feitas no Brasil em relação ao pagamento de impostos, à arrecadação, à competitividade. ou 5 anos, quando entrar em vigor, com todo o período de transição, entregaremos para que o Brasil possa ser o que sempre quis: um ativo para investimentos estrangeiros”, disse Lira, na época.
O IVA mais alto do mundo
Um dos aspectos mais discutidos é a definição de uma alíquota geral para o novo imposto de 27,8%, resultado de ajustes feitos pela Câmara para reduzir os 28,5% projetados após mudanças no Senado. A regulamentação aprovada prevê um “bloqueio” para evitar que o imposto ultrapasse 26,5%, que poderá ser acionado em 2031, quando o governo federal e o Comitê Gestor do IBS avaliarão a transição para o novo sistema tributário.
Mesmo assim, esse percentual coloca o Brasil entre os países com maior carga tributária sobre o consumo, como destaca Leonardo Roesler, especialista tributário do RMS Advogados e mestre em finanças e administração. “Embora tecnicamente justificável para manter a receita em níveis adequados, esta taxa impõe uma pressão significativa às empresas, especialmente aquelas que dependem de alta competitividade no mercado global”, alerta.
Os dados do período de transição, entre 2026 e 2030, deverão basear um relatório estimando o tamanho da taxa padrão que será cobrada a partir de 2033, quando todo o sistema estiver implementado. Caso a alíquota ultrapasse 26,5%, o governo federal deverá enviar ao Congresso um projeto para adequar a tributação a esse patamar. Esse projeto deverá ser enviado ao Congresso em até 90 dias após a publicação do balanço do período de transição da reforma. Segundo Roesler, uma taxa de imposto muito elevada pode desencorajar os investimentos produtivos, afectando a criação de emprego e o crescimento económico. Além disso, os setores que atuam em mercados internos mais sensíveis aos preços poderão enfrentar dificuldades em absorver custos adicionais, transferindo-os para o consumidor final.
“Para os cidadãos, o impacto da reforma tributária não será homogêneo”, afirma o tributarista. Segundo ele, o dispositivo, embora positivo, não é suficiente para resolver a regressividade intrínseca do modelo. “A implementação eficiente deste instrumento dependerá de regulamentações detalhadas, sistemas administrativos robustos e da capacidade operacional dos entes federativos”, avalia.
Próximas etapas
Após a aprovação do PLP 68/2024, o próximo passo na regulamentação da reforma tributária será a discussão, no Senado Federal, do PLP 108/2024. O texto, que detalha a estrutura e as atribuições do Comitê Gestor do Imposto sobre Mercadorias e Serviços (CG-IBS), já foi aprovado pela Câmara dos Deputados em agosto sob a relatoria do deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE).
Entre outras coisas, a proposta estabelece que o CG-IBS não estará vinculado, fiscalizado ou subordinado hierarquicamente a qualquer órgão da administração pública. Também detalha a representação dos estados, municípios e do Distrito Federal no comitê e o acompanhamento das obrigações relativas ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (IBS). Os presidentes e vice-presidentes do CG-IBS, conforme texto vigente, cumprirão mandatos de dois anos.
Discussão feroz
Bianca Xavier, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) e secretária-geral da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT), a continuação da discussão sobre o segundo projeto regulatório promete ser acirrada. “O maior debate é quem vai enviar o dinheiro”, diz ele.
“O PLP 108 é muito misto, além do Comitê Gestor, também trata de regras para o contribuinte, como alterações nas regras do Imposto sobre Morte e Transmissão de Doações (ITCMD)”, comenta. Do ponto de vista tributário, uma das fontes de conflito no projeto diz respeito à competência legislativa dos Estados sobre um imposto estadual que incide sobre a transmissão de heranças e doações, aplicado sobre bens.
Em relação ao Comitê Gestor, a estimativa é que o colegiado comporte cerca de R$ 4 trilhões em receitas. São 27 unidades da Federação e 5.569 municípios, todos buscando participar dessa gestão. “A expectativa é que a briga seja grande, mais por parte de entidades e partidos. Há divergências sobre quem vai ditar as regras de proporcionalidade, então podemos prever que a discussão do PL 108 também será acirrada”, avalia Xavier .
A Frente Parlamentar de Livre Comércio, que é contra a gestão centralizada dos impostos, sinalizou que pretende continuar a opor-se à questão, defendendo que a concentração desta arrecadação seria “o fim do federalismo” e da capacidade autónoma de decidir sobre os impostos locais.
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