Durante anos, e também durante a recente campanha presidencial, sucessivos governos dos EUA Venezuela e o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) orgulharam-se de ter o que consideram ser um sistema impecável. “O melhor sistema eleitoral do mundo”, dizem.
“Posso dizer com total confiança e segurança que o sistema eleitoral da Venezuela está totalmente protegido e é um dos melhores sistemas de votação automatizados do planeta”, disse o procurador-geral Tarek William Saab à BBC na noite de domingo (28/7), antes de publicar o resultados.
A oposição também acredita no sistema de votação rápido e seguro.
Contudo, a desconfiança da oposição sempre esteve nos responsáveis pela administração do sistema e no que acontece antes e depois da votação.
A CNE anunciou a Vitória de Nicolás Maduro nas eleições presidenciais, que, segundo a organização, tiveram uma taxa de participação de 59% dos eleitores.
O presidente da instituição, Elvis Amoroso, disse que, com 80% dos votos apurados e com uma tendência “contundente e irreversível”, Maduro venceu com 5.150.092 votos, ou 51,2%. E que o líder da oposição, Edmundo Gonzálezobteve 4.445.978 votos, ou 44,2%.
A oposição, porém, contesta esse resultado e diz que houve irregularidades.
Na segunda-feira, o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, garantiu ter registos de votação que demonstram o seu “triunfo categórico e matematicamente irreversível”.
O líder da oposição Maria Corina Machado disse, na época, que o grupo tem 73,20% dos minutos e diz que agora são suficientes para mostrar que González derrotou o atual presidente.
“Com as atas que nos faltam, mesmo que a CNE tenha dado 100% dos votos a Maduro, não chega ao que já temos. A diferença foi tão grande, tão grande, avassaladora, em todos os estados da Venezuela, em todos os estratos, em todos os setores, vencemos”, disse Machado.
A oposição afirma que a ata indica que González Urrutia teve 6,27 milhões de votos, contra 2,75 milhões do presidente Maduro.
No anúncio de segunda-feira, os líderes da oposição apelaram à calma aos apoiantes de González que saíram às ruas para protestar contra os resultados anunciados pela CNE, que na segunda-feira ratificou a vitória do candidato do Partido Socialista Unido da Venezuela.
Machado apelou aos seus seguidores para se reunirem esta terça-feira para se manifestarem de forma pacífica.
Estas eleições foram consideradas cruciais para a oposição, pois várias sondagens deram-lhe uma ampla vantagem sobre o chavismo, que está no poder há 25 anos.
Em cenários mais conservadores, a diferença era de 12 pontos a favor de González em relação a Maduro. Em outros, a vantagem ultrapassou os 25 pontos.
Como é possível que num sistema considerado tão seguro possa haver, segundo as alegações da oposição, fraudes ou irregularidades?
A seguir, entenda como funciona o sistema de votação na Venezuela.
Máquinas e votação
A votação na Venezuela é um processo automatizado desde 2004.
As máquinas evoluíram ao longo do tempo, mas hoje em dia são semelhantes a um computador pessoal.
A empresa responsável foi a Smartmatic. No entanto, após as eleições para a Assembleia Constituinte venezuelana de 2017, a Smartmatic afirmou que “houve manipulação de dados de participação” de pelo menos um milhão de eleitores e disse que “uma auditoria nos permitiria saber a quantidade exata de participação”.
Depois disso, a empresa deixou de trabalhar com o governo venezuelano.
Desde 2017, a ExClé, multinacional de origem argentina, é responsável pelo fornecimento dessas máquinas ao órgão eleitoral.
O processo inicial é semelhante a qualquer outro sistema de votação. Quando alguém vai votar, primeiro apresenta sua documentação para verificar os dados e ter a confirmação da mesa em que irá votar.
Depois disso, a pessoa se dirige à mesa correspondente, que terá uma urna eletrônica.
Na tela aparecem todos os candidatos que estão concorrendo, e o eleitor seleciona o escolhido.
A cada voto a máquina emite um recibo, ou seja, um pedaço de papel onde o eleitor pode verificar se o seu voto é igual ao registrado pela máquina.
Este recibo é então depositado em uma urna.
Assim, por um lado, cada máquina registra os votos, que são enviados aos centros de totalização de Caracas e, por outro, cada máquina possui uma urna onde são depositados os mesmos votos em papel.
Amoroso afirmou que houve um ataque “terrorista” que atrasou a transmissão dos dados, levantando dúvidas face às denúncias da oposição. Ele disse que pedirá ao Ministério Público uma investigação.
Maduro ecoou essas afirmações.
“A Venezuela sofreu um ataque durante a noite. Uma invasão massiva do sistema de transmissão do Conselho Nacional Eleitoral porque os demônios não queriam que os votos fossem totalizados e o boletim oficial fosse divulgado”, disse o presidente.
Eugenio Martínez, jornalista venezuelano e especialista em sistema eleitoral, falou em entrevista à BBC Mundo, serviço espanhol da BBC, sobre a dificuldade de hackear as 30 mil máquinas da CNE.
“As máquinas não transmitem dados pela internet, mas sim por linhas telefônicas criptografadas. Portanto, na prática, para fazer um hack dessa natureza é preciso hackear linha por linha, máquina por máquina”, disse.
Além da transmissão, ao final do dia eleitoral, cada máquina imprime um relatório de apuração com todos os votos registrados.
Também são realizadas auditorias em pelo menos 50% dos centros eleitorais para verificar se os votos lançados nas urnas correspondem ao que foi registrado eletronicamente pela máquina.
Neste contexto, os especialistas salientam que o acesso às atas é fundamental para corroborar a informação divulgada.
Acesso aos minutos
Nos dias que antecederam as eleições, houve duas coisas que analistas e cientistas políticos consideraram essenciais para que a oposição conseguisse bons resultados: primeiro, mobilizar um número suficiente de eleitores; segundo, garantir testemunhas de mesa suficientes para auditar o processo de votação.
Foi repetido repetidamente que as testemunhas de mesa eram essenciais.
Por que? Não só para acompanhar e garantir que não ocorreram irregularidades durante a corrida eleitoral, mas também para ter acesso à ata final de contagem, essencial para a auditoria do resultado.
Cada testemunha da tabela representa um registro que pode ser solicitado e, portanto, auditado.
Inicialmente, a oposição havia informado que teve acesso a apenas 40% das atas.
Carmen Beatriz Fernández, professora de Comunicação Política da Universidade de Navarra e CEO da DataestrategIA, afirma que “os números fornecidos pela CNE não suportam uma divulgação detalhada dos dados, que é um padrão nas eleições venezuelanas”.
Geoff Ramsey, membro sénior do Atlantic Council e especialista na Venezuela, disse que “se o governo não apoiar os resultados com dados, Maduro enfrentará o maior teste de lealdade que teve em anos”.
Para isso, nos próximos dias, a CNE deverá publicar dados eleitorais detalhados por tabela, município e estado, algo que, por exemplo, não foi feito no último referendo sobre Essequibo, realizado em dezembro passado.
‘Irregularidades’
A falta de acesso imediato às actas é o principal problema que a oposição enfrenta ao tentar contestar os dados fornecidos pela CNE.
No entanto, Eugenio Martínez aponta outras irregularidades.
“Faltou informação e critérios claros. Quando o processo eleitoral terminou, a CNE nunca anunciou que o tinha concluído. Também não publicou relatórios sobre as mesas montadas ou a presença de pessoal técnico”, afirma.
Além disso, embora houvesse técnicos da oposição credenciados nas salas de totalização, não havia acesso de representantes políticos da oposição à CNE.
“É uma situação que não ocorria no passado. Se perder representação política junto à CNE, não pode fazer reclamação”, destaca Martínez.
Isto tornará o processo de contestação das eleições na Venezuela mais complicado. Para isso será necessário aguardar o anúncio oficial do vencedor. Depois disso, no prazo de 20 dias, é possível interpor recurso à CNE.
Depois de passar pela CNE, é possível recorrer à Sala Eleitoral do Supremo Tribunal de Justiça para pedir a nulidade da eleição.
Por fim, há o recurso de revisão perante a Câmara Constitucional.
Tanto a CNE como o Judiciário são formados por pessoas alinhadas ao chavismo.
“Entramos agora numa dinâmica muito mais desordenada e imprevisível”, afirma Carmen Beatriz Fernández.
Com reportagem de Alicia Hernández, da BBC News Mundo
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