O peruano Luis Fernando Figari foi durante anos o principal líder de uma organização religiosa cujo lema era “quem obedece nunca se engana”.
O grupo é o Sodalitium Christianae Vitae (Sodalium da Vida Cristã, em português) que ele fundou. E a pessoa a quem eles tinham que obedecer era ele.
De acordo com muitos ex-membros da organizaçãoFigari e outros dirigentes do Sodalício implementaram um sistema de fidelização baseado na violência, agressões, humilhações e abusos sexuais sofridos por dezenas de jovens que ainda hoje sofrem consequências e nunca receberam justiça.
O grupo é um movimento eclesiástico, um grupo de fiéis de Igreja católica que se organiza de forma independente, mas é reconhecida pela Igreja.
O Sodalício foi criado em 1971 e formalmente reconhecido como movimento eclesiástico aprovado pelo Vaticano em 1997, por decisão do Papa João Paulo II.
Ao longo dos anos, o movimento passou a ser considerado uma das organizações religiosas mais influentes e poderosas do Peru, o que, segundo as suas vítimas e detratores, explica porque os relatos de abusos foram sistematicamente ignorados ou silenciados no país durante décadas.
Depois muitas reclamaçõeso Vaticano tomou medidas contra o criador da entidade. A Conferência Episcopal Peruana anunciou em meados de agosto que o órgão do Vaticano responsável pela organização dos movimentos eclesiásticos, o Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, decretou a expulsão de Figari da organização que fundou.
O Vaticano diz que procura “restaurar a justiça” ferida pelo comportamento de Figari ao longo de “muitos anos” e “proteger no futuro o bem individual dos fiéis e da Igreja”.
O Sodalício continua a ser um movimento eclesiástico aprovado pelo Vaticano operando no Peru e com ramificações internacionais.
O Brasil foi o primeiro país a ter filiais do movimento fora do Peru. A convite do então Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Eugênio de Araujo Sales, Sodalício fundou uma comunidade no Rio em 1986, depois outras em Petrópolis (1990) e São Paulo (1992).
Desde 2017, o movimento cuida da paróquia Nossa Senhora da Guia, no Rio. Também é responsável pelo Movimento Vida Cristã e pela ONG Somar, no setor de educação. Em 2019, Sodalício no Brasil fez uma pedido de perdão a todas as vítimas de Figari.
Após a decisão do papa em agosto de 2024, a BBC News Brasil procurou o movimento no Brasil, mas foi informada que a comunicação sobre o assunto está sendo feita por meio da sede internacional do grupo.
Em um declaração Sobre a expulsão de Figari, a sede da entidade afirmou que “saúda a decisão do Papa Francisco” e que com ela o Vaticano faz “um gesto de caridade pastoral, de justiça e de reconciliação” dentro da comunidade e com “todas as pessoas que foram afetadas pelos abusos cometida pelo Sr. Figari”, que agora está completamente separado da organização.
A entidade disse ainda que “reconhece profundamente a dor das vítimas” e que reitera a sua “solidariedade com elas”, além de enumerar medidas que tomou desde que as denúncias foram feitas.
“As autoridades da Sodalium colaboram estreitamente com a Santa Sé na busca da verdade e da justiça”, afirmou a organização.
‘Soldados contra a esquerda’
Luis Fernando Figari nasceu em Lima em 1947.
Estudou na escola Santa María de Lima, onde tradicionalmente frequentam crianças de famílias ricas de Lima e onde, segundo Pao Ugaz, jornalista que investigou sua figura, era um aluno mediano.
Formado em Ciências Humanas e Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Peru, posteriormente estudou Teologia.
Segundo Ugaz, foi nesses anos que Figari começou a pensar em criar uma organização para a qual inicialmente não previa um aspecto religioso.
Em 1971, Figari fundou finalmente, juntamente com Germán Doig e outros, o “Sodalitium Chrisitianae Vitae” ou Sodalium da Vida Cristã, uma comunidade católica composta por leigos consagrados e sacerdotes que vivem juntos sob os compromissos declarados de celibato e obediência, e que são chamados sodalitas.
Ugaz disse à BBC News Mundo (serviço espanhol da BBC) que Figari buscava com seu Sodalício “uma resposta ideológica dentro da Igreja para Teologia da Libertação e as suas mensagens a favor de uma Igreja dos pobres e de maior justiça social”.
“Os sodalitas se consideram os grandes soldados contra a esquerda”, acrescenta Ugaz.
A Teologia da Libertação é um movimento católico que defende a promoção da justiça social como principal dever e compromisso cristão. Foi muito forte na América Latina nas décadas de 1980 e 1990, mas acabou marginalizado pela Igreja durante o papado de João Paulo II.
A nova organização de Figari ganhou seguidores até que em 1997 o Papa João Paulo II a reconheceu oficialmente como uma das Sociedades de Vida Apostólica da Igreja, colocando-a sob a tutela do Dicastério responsável por elas.
Já convertido numa das entidades religiosas mais poderosas e influentes do Peru, onde estabeleceu ligações com o poder político e financeiro, o Sodalicio expandiu-se para 25 países e contou com mais de 20 mil membros.
Mas após as investigações dos jornalistas Pedro Salinas e Pao Ugaz e as denúncias de dezenas de pessoas, surgiu um lado até então oculto do movimento.
‘Meio monges, meio soldados’
No livro Muitos monges, muitos soldados (meio monges, meio soldados, em espanhol), publicado em 2009, Salinas e Ugaz publicaram relatos de abusos, humilhações e agressões sexuais por parte de dezenas de membros do Sodalício que acusaram diretamente Figari e que até então não tinham encontrado espaço na mídia ou com o autoridades locais.
As vítimas afirmam que Figari estabeleceu um sistema de submissão total ao seu poder e que, sob o lema “quem obedece nunca se engana”, levou os jovens sob sua responsabilidade a se submeterem a diversas práticas degradantes, ataques físicos e psicológicos e abusos sexuais. abuso.
Figari sempre negou as acusações contra ele.
José Enrique Escardó Steck, que relatou ter sido vítima de abusos por parte de Figari, Doig e outros funcionários do Sodalício, disse à BBC News Mundo que seus superiores o obrigaram a dormir durante um mês em uma escada e até o ameaçaram com uma faca no pescoço.
Ele também disse que ele e seus colegas às vezes eram forçados a bater uns nos outros, no que ele descreveu como “um sistema de bullying organizado”.
Outro denunciante disse que Figari lhe mostrou revistas pornográficas e pediu que ele se sentasse em uma vara.
Em 2007, a polícia peruana capturou Sodalite Daniel Murguía num quarto de motel no centro de Lima com um menino de 11 anos que se preparava para ser fotografado nu.
Sodalício anunciou a expulsão de Murguía dois dias depois e disse em comunicado que a situação “surpreendeu e afetou dolorosamente toda a nossa comunidade”.
Murguía foi inicialmente preso, mas foi libertado três anos depois.
Outro membro destacado da Congregação, o vigário-geral Germán Doig, falecido em 2001, aos 44 anos, também foi acusado de diversos abusos sexuais – o que levou o Vaticano a paralisar em 2011 o processo de sua beatificação, iniciado há poucos anos. mais cedo.
A libertação de Murguía e a impunidade de Doig alimentaram suspeitas de suposta cumplicidade entre os principais dirigentes do Sodalício e os mais altos níveis do poder no Peru.
Os escândalos finalmente levaram à abertura de uma investigação do Ministério Público sobre as denúncias dos crimes de Figari. Em 2016, prestou depoimento perante um promotor peruano no consulado peruano em Roma.
Ao sair, ele fez seus últimos comentários públicos até o momento.
“Não tenho conhecimento de nenhuma vítima”, disse ele.
Anos depois, o caso ainda tramita no Ministério Público.
O que acontecerá com o movimento?
A ascensão ao papado de Jorge Bergoglio começou a quebrar a proteção que a Igreja parecia ter fornecido a Figari durante anos, embora não na velocidade ou intensidade desejada pelas pessoas que fizeram as acusações.
Sob o Papa Francisco, ele foi proibido de retornar ao Peru e de fazer declarações públicas. Também foi estabelecido que sua manutenção no exílio de Roma deveria ser paga pelo Sodalitium.
Em 2016, o superior geral da organização, Alessandro Moroni, disse que o Sodalício considerava Figari “culpado pelos abusos que lhe foram atribuídos”, pelos quais foi declarado persona non grata.
No verão de 2023, após anos de reclamações, Francisco decidiu enviar ao Peru o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, e o padre espanhol Jordi Bertomeu, com a missão de investigar os numerosos relatos de abusos dentro da Congregação.
Pouco depois do início da investigação dos enviados papais, o arcebispo de Piura e Tumbes, monsenhor José Eguren, renunciou ao cargo. Ele havia sido ligado às práticas do Sodalício pelo jornalista Pedro Salinas.
Segundo a Igreja, a recente expulsão de Figari procura trazer justiça, mas algumas das suas vítimas estão céticas.
José Enrique Escardó Steck, que relatou ter sido vítima de abusos por parte de Figari, Doig e outros funcionários do Sodalício quando era um jovem sob seus cuidados, acredita que o anúncio da expulsão é “mais um exemplo das estratégias de marketing da Igreja Católica”. , que “não se preocupa com as vítimas, mas com a imagem da Igreja”.
“Procuravam um bode expiatório para expulsar, para que esta organização baseada na violência física, psicológica e sexual pudesse continuar”, disse Steck à BBC News Mundo.
Ele reclama que as denúncias que apresentou contra Figari e outros integrantes do Sodalício nunca prosperaram devido à influência que a organização mantém no Peru.
Está pendente o último recurso apresentado à Procuradoria Superior do Crime Organizado contra a decisão de arquivamento do processo.
O atual superior das Sodalitas, José David Correa, afirmou em comunicado após tomar conhecimento da decisão de expulsão de Luis Fernando Figari, que ele “é o fundador histórico do Sodalício de Vida Cristã, mas não é uma referência espiritual para a nossa comunidade”. .
A atual liderança do Sodalício diz estar comprometida com “um processo de renovação”.
Embora a declaração de Correa diga que ele reconhece profundamente a dor das vítimas e reitera a sua solidariedade para com elas, Steck disse que ninguém da Igreja Católica lhe pediu desculpas pelos abusos que sofreram.
Algumas vozes acreditam que o único caminho possível é a sua dissolução.
Pao Ugaz afirma que a “decisão inusitada e muito corajosa” tomada pelo Papa Francisco “é uma lição para a Igreja e a Justiça peruana e anuncia o início do fim de uma organização que até agora gozava de impunidade”.
O outro jornalista que ajudou a tornar visíveis as acusações de abuso, Pedro Salinas, disse esperar que a Santa Sé não tivesse “outra escolha senão ditar a dissolução” do Sodalitium.
*contribuição de Letícia Mori, da BBC News de São Paulo
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