A língua de Portugal não nasceu exactamente em Portugal. E o Brasil, principal ex-colônia portuguesa, fala uma língua que está cada vez mais mudando e em breve será chamada de “brasileira”, e não mais “linguagem Português”.
São visões que talvez afetem o orgulho do povo português, do povo que construiu o primeiro estado europeu moderno e deixou marcas profundas da sua cultura (e também de dominação pela força) nos continentes americano, africano e asiático.
O defensor destas visões, porém, é precisamente um português: o linguista Fernando Venâncio. Publicou recentemente no Brasil o livro Foi assim que nasceu uma linguagem (editora Tinta da China).
Venâncio defende — apoiado em vários estudos académicos e registos históricos — que a língua portuguesa nasceu num território do qual apenas uma parte é atualmente Portugal: o Reino da Galiza, fundado no século V d.C., após a dissolução do Império Romano.
“A simples ideia de que, um dia, uma língua estrangeira possa ter sido a língua de Portugal é-nos insuportável”, escreve o linguista.
Para se ter uma ideia, Lisboa, atual centro da vida portuguesa, passou mais 700 anos sob outro domínio: o dos árabes que ocuparam a Península Ibérica.
Até então, Lisboa (e grande parte da península) falava moçárabe — uma variedade de dialetos de origem latina influenciados pelo árabe, que era padrão na vida institucional da época e legou palavras como “almofada”, “açougueiro” e até “então”. e assim”. . Durante esta época, a língua galega já estava a tomar forma.
A parte principal do antigo Reino da Galiza é atualmente a Galiza, uma comunidade autónoma de Espanha conhecida por cidades como a Corunha, Vigo e Santiago de Compostela (que é considerada o “berço simbólico” da língua galega).
Os movimentos locais hoje tentam valorizar o uso do galego, que sofreu um processo de apagamento e desprezo tanto por parte de portugueses como de espanhóis. O castelhano é amplamente preferido na vida quotidiana da Galiza, especialmente nas grandes cidades.
“Há galegos que fazem o possível para reverter o processo, mas é muito difícil porque quem tem prestígio é o castelhano”, afirma Venâncio à BBC News Brasil.
“É em castelhano que se cantam as canções diárias mais comuns em Espanha. O galego é visto como uma língua rural, uma língua de aldeia”.
Um exemplo desta tensão está na produção espanhola Para o mar (2004), estrelado por Javier Bardem e vencedor do Oscar de melhor filme internacional. Ambienta-se na Galiza agrária e rústica e dialoga em galego.
A língua não tem o mesmo prestígio e apoio em Espanha que o catalão, falado como primeira língua por uma parte considerável da população de Barcelona e que é uma expressão das aspirações de independência da Catalunha em relação a Madrid.
A razão da dissipação histórica das raízes galegas na língua portuguesa reside precisamente, explica Venâncio, na construção da identidade nacional de Portugal — fundada como reino em 1139.
Os portugueses precisavam de cultivar uma narrativa de unidade e diferença em relação a outras regiões. Assim, foram apagadas as pegadas originárias da Galiza, reino que cairia sob a esfera de Castela nos séculos seguintes.
Segundo o linguista, a própria ideia de “galego-português”, termo que costuma designar uma forma antiga do português, estudada nos livros escolares brasileiros através das obras de Gil Vicente (dramaturgo dos séculos XV e XVI, autor de Auto da Barca do Inferno), é um exemplo de disfarce dessas raízes.
A língua portuguesa nasceu simplesmente galega, sustenta Venâncio, e foi posteriormente transmitida ao sul do reino, ganhando contornos próprios, hoje distintos das suas origens — embora o português esteja mais próximo do galego do que do castelhano.
Aliás, a idealização clássica de que a palavra saudade Só existe na língua portuguesa e desmorona numa simples consulta a um dicionário galego.
‘Inho’ e ‘oxente’: herança galega?
Um mergulho nas características dessa língua indica que mesmo as “marcas” brasileiras têm origem no galego.
O diminutivo -inhocafezinho ou Ronaldinho, é frequentemente associado a um traço de carinho e cordialidade brasileira.
Mas este elemento, afirma Venâncio, é uma criação da língua galega, que passou pelo seu processo de formação, como se viu, muito antes dos anos 1500 da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil.
Já é a origem da mais famosa expressão nordestina, oxente“podemos afirmar com segurança que tem influência galega”, afirma o linguista.
Não há registro definitivo do surgimento de oxente na linguagem nordestina.
Na internet, você encontra até a tese de que se trata de uma derivação da expressão inglesa “oh shit” (“que porra é essa…”, em tradução livre), que teria chegado com soldados americanos estacionados no Nordeste brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial.
A evidência, no entanto, aponta para o noroeste da Península Ibérica.
“Xente” (gente) é uma palavra galega. O fonema de X no lugar dos sons de G e J em português, aliás, é uma das características mais marcantes da língua galega (José vira Xosé na Galiza, por exemplo).
Não se pode ignorar que o termo “galego” — povo com a genética norte-europeia dos celtas — é muito utilizado no Nordeste brasileiro para designar “loiro”. A região, de facto, recebeu imigrantes da Galiza.
‘língua brasileira’
Apesar dos 79 anos e décadas de estudo (e de ensino em universidades holandesas) da língua portuguesa, Venâncio está longe de ser um purista.
Ele diz que não vê isso “como uma tragédia ou mesmo como um drama” a entrada de termos brasileiros — como “frigorífico” — na fala das crianças portuguesas.
“O exemplo que normalmente se dá é, em vez de geladeira, dizemos geladeira. Portanto, podemos admitir que uma criança se aproxime da mãe e pergunte ‘posso tirar isso ou aquilo da geladeira?’ A criança não está falando brasileiro, está falando um pouco de brasileiro e, na vida real, isso não tem importância. Mas é fato que esse processo acontece”, afirma Venâncio.
Mesmo com a influência da língua brasileira na população portuguesa, o linguista considera que está em curso um processo de separação entre as duas variantes, e não de união.
“Não há como voltar atrás, não há como parar esse processo de separação entre o português e o brasileiro”, afirma Venâncio, que já pensa intuitivamente a variante como uma língua separada.
“O brasileiro é uma língua magnífica. Desculpe: é uma norma [variante] magnífico”, ele se corrige.
“Bom, é possível que você ainda esteja vivo quando se formar uma língua brasileira, o que, digamos, não será o meu caso.”
Mas, dos dois lados do Oceano Atlântico, linguistas e gramáticos argumentam que ainda há unidade nas normas linguísticas e nos usos das duas variantes, que os morfemas (artigos, preposições, pronomes, entre outros) permanecem os mesmos e que o português culto brasileiro é quase igual ao português culto de Portugal.
Esses elementos impediriam a afirmação de que existe uma “língua brasileira”.
Venâncio não entra nessas questões técnicas. Diz, porém, que a língua brasileira que chama de “espontânea”, mais distante da norma tradicional culta, vai separando aos poucos a nossa variante do português europeu.
“Esta é uma forma de medir [o processo de separação]. E é também uma forma de colocar a questão. O falante brasileiro culto também fala de forma mais espontânea, de forma mais ‘cotidiana’, e esse processo será cada vez mais acelerado”, afirma.
“E sabemos que nos processos de mudança linguística há sempre estes momentos de aceleração. Haverá um afastamento do português europeu. Não sabemos quando isso acontecerá. Tudo o que podemos dizer é que isto é inevitável.”
O linguista tenta resolver o problema concluindo Foi assim que nasceu uma linguagem afirmando: “O português promete, portanto, dividir-se – ou multiplicar-se – em outras línguas, tal como um dia aconteceu à língua dos romanos, que, por sua vez, não tinham noção destas andanças da história. mais feliz? Essa é a coisa certa a fazer?
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