A batalha jurídica entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a rede social X e seu dono, o bilionário Elon Muskteve como ponto culminante o plataforma capotada no Brasil desde a madrugada de sábado (31/08).
Por um lado, o STF determinou que a empresa nomeasse um representante legal no Brasil e cumprisse uma série de determinações relativas ao bloqueio de conteúdos e usuários. Por outro lado, Musk tem se recusado a cumprir ordens e acusa o Judiciário brasileiro de ser uma ameaça à democracia.
Musk tem repetido que sua determinação em não cumprir as determinações do STF faz parte de sua defesa da liberdade de expressão. Por outro lado, o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo despacho que suspendeu X no Brasil, argumenta que “Elon Musk confunde liberdade de expressão com uma liberdade de agressão inexistente”.
Mas disputas envolvendo ordens de bloqueio de conteúdo não são novidade para X ou Musk, mas pelo menos dois casos semelhantes tiveram resultados muito diferentes. Na Índia e na Turquia, por exemplo, as autoridades ordenaram a remoção de perfis e conteúdos considerados impróprios e, apesar da resistência inicial, X acabou acatando as determinações.
O fato de o desfecho nesses países ter sido diferente, embora a situação fosse semelhante, levou à pergunta: por que Musk seguiu ordens na Turquia e na Índia, mas insistiu em quebrá-las no Brasil?
A BBC News Brasil ouviu especialistas em mídia, direito e democracia para ajudar a responder essa pergunta. Eles argumentam que Musk adota essa postura no Brasil devido a uma combinação de fatores, incluindo o apoio que tem da direita brasileira, especialmente aquela que gira em torno do ex-presidente. Jair Bolsonaro (PL).
Eles argumentam que essa proximidade cria condições para que Musk conteste o STF na medida em que este ofereça respaldo político para essa postura.
Especialistas apontam ainda que, embora Musk se posicione como defensor do direito à liberdade de expressão, na prática, ele concilia essa suposta bandeira com seus interesses econômicos a ponto de não hesitar em manter acordos bilionários com países considerados por eles ser autoritário, o exemplo da China e da Arábia Saudita.
Índia: “Beat”, bloqueios e promessas
Em 2021, antes de Musk comprar a plataforma, o então Twitter iniciou uma batalha judicial com o governo indiano liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi. Em meio ao confronto, a polícia indiana chegou a invadir os escritórios da empresa no país.
No centro desta disputa estavam as exigências do governo indiano para que o Twitter bloqueasse uma série de perfis ligados a protestos massivos de agricultores contra o governo Modi.
Nos últimos anos, o governo de Naredra Modi tem sido acusado por organizações não governamentais que trabalham na defesa dos direitos humanos de adotar políticas discriminatórias contra as minorias étnicas no país e de tomar medidas para silenciar os oposicionistas.
O governo indiano pediu então ao Twitter que removesse os tweets que usavam uma hashtag considerada “incendiária” e contas usadas por grupos separatistas étnicos Sikh e alegadamente apoiados pelo Paquistão.
Na época, o Twitter bloqueou cerca de 250 contas em resposta a um aviso legal do governo, mas seis horas depois restabeleceu os perfis.
Em 2022, antes mesmo de Musk adquirir a plataforma, o Twitter iniciou uma ação contra as exigências do governo indiano para a remoção de perfis e conteúdos, sob o argumento de que representavam uma ameaça à “ordem pública”.
Na época, a administração do Twitter rebateu afirmando que alguns dos pedidos de bloqueio de contas e remoção de conteúdo violavam direitos básicos como a liberdade de expressão.
Em fevereiro de 2024, porém, após a compra do Twitter por Musk, a plataforma acatou as decisões do governo indiano e admitiu ter bloqueado uma série de contas ligadas a manifestantes antigovernamentais.
“Em cumprimento às ordens, bloquearemos essas contas e postagens apenas na Índia, porém, discordamos dessas ações e sustentamos que a liberdade de expressão deve ser estendida a essas postagens”, dizia comunicado divulgado pela empresa na época.
E embora X tenha aceitado as decisões do governo indiano, Elon Musk felicitou Modi pela sua vitória nas eleições gerais deste ano.
“Parabéns, Narendra Modi, pela sua vitória eleitoral na maior democracia do mundo. Estou ansioso para ver minhas empresas fazendo um trabalho emocionante na Índia”, disse Musk em seu perfil no X.
Nos últimos meses, tem havido especulações sobre a possibilidade de Musk fazer um investimento bilionário na construção de uma megafábrica de baterias para a Tesla, sua empresa de carros elétricos na Índia.
Uma visita de Musk ao país chegou a ser cogitada, mas foi cancelada pouco antes do previsto para acontecer.
Em maio, foi anunciado que a fábrica será construída na China, onde Musk já fabrica carros Tesla e onde X não é permitido.
Bloqueios de um lado, visitas amigáveis do outro
Em maio de 2023, já sob o comando de Musk, X e Elon Musk foram criticados por terem acatado as determinações do governo turco, liderado por Recep Tayyip Erdoğanderrubar contas e cargos de personalidades ligadas à oposição do país.
Em nota, divulgada na época, X admitiu que cumpriria ordens.
“Em resposta à ação legal e para garantir que o Twitter permaneça disponível para as pessoas na Turquia, tomamos medidas para restringir o acesso a alguns conteúdos na Turquia hoje”, disse na época um comunicado da equipe de Assuntos Globais de X.
Apesar de se autoproclamar um “defensor absolutista da liberdade de expressão”, Musk reagiu ao ser criticado pela postura adotada pela empresa na época.
“A escolha é limitar completamente o Twitter ou limitar o acesso a alguns tweets. Musk disse em seu perfil X.
As ordens do governo turco para retirar conteúdo do X não impediram, no entanto, que Musk se reunisse com o primeiro-ministro turco quatro meses depois. Em setembro de 2023, os dois reuniram-se em Nova Iorque, durante a visita de Erdogan à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).
A reunião amigável contou até com a presença de um de seus filhos e do pedido de Erdogan para que Musk construísse uma fábrica da Tesla em seu país.
“Hipocrisia” e conexão com a direita
Para especialistas em mídia e relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil, o argumento de Musk de descumprir ordens do STF no Brasil a ponto de levar à derrubada da plataforma no país não se sustenta.
Segundo eles, Musk seria “hipócrita” e agiria com base em interesses políticos e econômicos.
“É hipocrisia Musk afirmar que desafia as ordens do STF ao defender a liberdade de expressão, mas segue ordens semelhantes em outros países. Além disso, como pode um defensor tão ferrenho da liberdade de expressão simplesmente permanecer em silêncio sobre o fato de que X não é permitido em países como a China, onde ele faz negócios?”, disse David Nemer, especialista em antropologia da tecnologia e professor da Universidade da Virgínia, à BBC News Brasil.
Segundo ele, Musk só teria “esticado a corda” no Brasil porque contou com o apoio de parte significativa da direita brasileira.
“Ele conta com o apoio de importantes figuras da direita brasileira, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, e de muitos outros parlamentares que agora criticam a decisão. Esse apoio político lhe dá a liberdade de contestar as ordens do Supremo Tribunal Federal no Brasil e, pelo menos ao mesmo tempo, ajuda a desgastar a credibilidade da instituição no país”, disse Nemer.
Na semana passada, políticos de direita no Brasil como o senador e filho de Jair Bolsonaro, Flávio Bolsonaro (PL-RJ) defenderam mais uma vez o impeachment de Alexandre de Moraes.
Nemer destaca ainda que a Turquia e a Índia são países importantes nas estratégias de negócios de Musk. A Turquia é um dos países mais populosos da Europa e também tem ligações com o continente asiático, já que a maior parte do seu território está localizada na Ásia.
A Índia, por outro lado, é o país mais populoso do mundo e uma das maiores economias do mundo neste momento. Além do seu potencial como mercado consumidor, a Índia está a emergir como um possível local onde Musk pode instalar fábricas da Tesla.
O professor de Estudos Brasileiros da Universidade de Oklahoma Fábio de Sá e Silva tem avaliação semelhante à de Nemer.
“O que ele faz é um uso oportunista e à la carte do argumento da liberdade de expressão quando esse argumento se ajusta bem aos seus interesses econômicos e políticos em cada país”, disse o professor à BBC News Brasil.
Silva afirma que o comportamento de Musk em relação à liberdade de expressão muda de acordo com seus interesses comerciais.
“Ele não é sincero e honesto quando diz que é um defensor da liberdade absoluta de expressão, pois convive bem com as restrições desses regimes autoritários […] Índia, Turquia, China e Arábia Saudita são importantes fontes de recursos para os seus projetos, tanto como mercados relevantes como como fontes de investimento”, disse Silva.
O professor afirma que, além dos interesses comerciais, o que explicaria a adoção de comportamentos diferentes por Musk em situações semelhantes seria o seu atual alinhamento político.
“No caso brasileiro, parece haver uma proximidade entre Musk e a extrema direita. Ele foi condecorado por Bolsonaro e a agenda da liberdade absoluta de expressão, embora não amparada na Constituição de 1988, foi assumida pela nossa extrema direita”, ele afirmou.
Segundo ele, Musk ajusta os seus interesses políticos aos seus interesses económicos.
“É um alinhamento político, mas também corresponde aos seus interesses económicos em poder operar sem restrições nos mercados democráticos, ao mesmo tempo que faz as acomodações necessárias em contextos autoritários”, explicou.
A BBC News Brasil enviou perguntas à assessoria de imprensa de X, mas nenhuma resposta foi enviada.
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