No dia em que Sheynnis Palacios ganhou o Miss Universo, Jared Ramírez decidiu levar uma bandeira do Miss Universo Nicarágua Tive em casa e saí às ruas para comemorar o triunfo da primeira mulher na história do país a conquistar esse título.
Nunca lhe passou pela cabeça que acabaria na prisão naquela noite de 2023, muito menos que passaria mais de nove meses detido.
Mas Ramírez, 35 anos, sabia que sua bandeira tinha um escudo invertido, considerado um sinal de protesto contra o governo de Daniel Ortega. A bandeira também trazia os dizeres: “Chega de ditadura”.
“Nunca considerei isso uma celebração política. Peguei a bandeira porque é a bandeira da minha nação e saí às ruas”, disse Ramírez à BBC News Mundo na Cidade da Guatemala, onde chegou em 5 de setembro após um acordo entre a Nicarágua, Guatemala e os Estados Unidos, que permitiram a libertação de 135 prisioneiros e o seu envio para o exílio.
Ele foi preso sob a acusação de “roubo qualificado e posse ilegal de armas”.
A libertação de Ramírez e dos demais prisioneiros ocorreu por razões humanitárias. De acordo com o Mecanismo para o Reconhecimento de Presos Políticos na Nicarágua, ainda existem 36 presos políticos.
“Eu não sabia que existiam presos políticos. A desinformação na Nicarágua é impressionante. Eu conhecia apenas algumas pessoas, mas não sabia que havia tantos presos políticos”, diz Ramírez.
Em 10 de setembro, cinco dias após o exílio, o Supremo Tribunal de Justiça da Nicarágua, alinhado com o governo Ortega, informou ter retirado a nacionalidade dos 135 prisioneiros enviados para a Guatemala e ter confiscado os seus bens.
A declaração do Supremo Tribunal garante que os “condenados por actos criminosos” promoveram “violência, ódio, terrorismo e desestabilização económica” e que o confisco dos seus bens é para os fazer responder pelos “graves danos materiais e imateriais” que teriam causado.
No dia 18 de novembro de 2023, quando aconteceu o concurso Miss Universo, Ramírez havia saído para comemorar o terceiro aniversário do filho.
Ao voltar para casa e saber da vitória de Sheynnis Palacios, pegou a bandeira que guardava desde 2018, ano em que participou dos protestos contra o governo Ortega, e partiu em sua motocicleta.
Após esse período, Ramírez decidiu não participar mais de manifestações e “ficar calado” por medo das consequências para ele e sua família.
A bandeira, diz ele, estava enrolada em sua mão.
O crime de manifestação
Embora desde setembro de 2018 o governo da Nicarágua tenha proibido as manifestações e as considere um crime, em novembro passado as pessoas saíram às ruas para celebrar a sua vitória no concurso de beleza.
Foi a primeira vez em anos que multidões agitando bandeiras azuis e brancas foram vistas nas ruas do país. Houve celebrações em cidades como Manágua, Diriamba, Jinotega.
Mas várias pessoas acabaram na prisão.
Naquela noite, Ramírez diz que passou cerca de meia hora numa celebração em Manágua quando um homem se aproximou dele para perguntar o que dizia a sua bandeira.
Ao ver o escudo invertido, o homem prendeu Ramírez e mais gente começou a cercá-lo.
O triunfo de Palacios no Miss Universo tornou-se uma questão controversa e até política na Nicarágua.
Após sua vitória, Ortega baniu a proprietária da franquia Miss Nicarágua, Karen Celeberrti, e a acusou de “conspiração e traição”.
Em maio passado, Anne Jakrajutatip, que dirige o Miss Universo, afirmou via Instagram que Palacios vivia em “exílio indefinido”.
No entanto, o nicaragüense negou posteriormente.
“Quero informar que não estou exilado. Quero informar a todos os meios de comunicação daqui que não estou exilado. As portas do meu país estão abertas para celebrarmos com todos os nicaraguenses”, disse Palacios.
Ela, porém, é a única Miss Universo que não voltou ao seu país para comemorar a coroa nos últimos 20 anos, segundo pesquisa publicada pelo jornal La Prensa.
Embora tenha garantido em diversas ocasiões que voltará ao país, isso ainda não aconteceu e faltam apenas dois meses para o final do seu reinado.
‘Eles vão me matar’
Ramírez ficou preso por mais de nove meses, de 18 de novembro de 2023 a 5 de setembro.
“Eles tiraram fotos minhas, pegaram minha identidade e começaram a me dizer: ‘Somos da Frente [Sandinista, da qual Ortega faz parte].’ Levaram as chaves da minha moto e iniciaram um interrogatório”, lembra Ramírez sobre o dia em que foi preso.
Ele foi então levado para a delegacia, onde um policial lhe disse: “Quer saber? Você merece levar um tiro e deixar isso acabar. Por sua causa o país está assim”.
Após a ameaça de morte, Ramírez sentiu medo.
“Foi o momento que senti: ‘Chegou aqui, vão me matar. Vão jogar meu corpo fora e dizer que foi homicídio, roubo, agressão’. Comecei a pedir perdão ao Senhor, eu senti muito medo pela minha vida naquele momento.”
As razões pelas quais alguns dos 135 prisioneiros acabaram detidos são diversas.
O jornalista Víctor Ticay, por exemplo, foi preso por transmitir uma procissão religiosa no Facebook; Óscar Parrilla e Kevin Laguna por tentarem pintar um mural em homenagem ao Miss Universo na cidade de Estelí; Anielka García pela confecção de algumas camisetas em homenagem à crise de 2018.
Olesia Muñoz nem sabia por que a tiraram de casa.
Prisão por comentário nas redes
Foi a segunda vez que Olesia Muñoz se tornou presa política.
A primeira foi em 2018, quando ficou detida durante dez meses, acusada de terrorismo, crime organizado e posse ilegal de armas.
Desta vez, prenderam-na em abril de 2023. Ela passou 17 meses na prisão, acusada de crimes cibernéticos.
Só depois de ser retirada de sua casa é que Muñoz soube que foi acusada de ter comentado uma suposta postagem nas redes sociais em que um bispo criticava o governo.
Ela diz que a publicação, porém, nunca existiu: teria sido inventada.
“Eu nem tenho mídia social”, diz ele.
Católicos, incluindo padres, são alvos de perseguição na Nicarágua.
As condições vividas nas prisões da Nicarágua foram relatadas na Guatemala, onde são mantidos presos políticos.
Jared Ramírez afirma ter sofrido abusos físicos e psicológicos. Quando foi preso pela primeira vez, ele diz que um policial bateu duas vezes na nuca dele.
“Tínhamos menos direitos do que qualquer prisioneiro comum. Só recebíamos uma visita por mês, durante 30 a 40 minutos. Tínhamos um pátio e luz solar durante 10 a 15 minutos por dia. Passávamos todo o nosso tempo trancados, num calor sufocante. “
Olesia Muñoz descreve estar “praticamente numa jaula”.
“Ferro no telhado, ferro nas laterais e o calor era insuportável. Ficava trancado o dia todo”, relata.
Recomeçar
Na semana passada, o governo da Guatemala acolheu aqueles que considera prisioneiros políticos.
“Uma vez na Guatemala, será oferecida a essas pessoas a oportunidade de solicitar formas legais de reconstruir suas vidas nos Estados Unidos ou em outros países”, disse o conselheiro de Segurança Nacional do governo Joe Biden, Jake Sullivan.
Este é o segundo grupo de presos políticos a ser banido da Nicarágua nos últimos dois anos. A primeira vez foi em 9 de fevereiro de 2023, quando um grupo de 222 pessoas voou para Washington.
“A minha prioridade é que este processo termine o mais rápido possível para que eu possa me estabilizar financeiramente e trazer a minha esposa, ou que as organizações me ajudem a conseguir reencontrar a minha família. Um reencontro e um recomeço”, afirma Ramírez, que afirma querer dar ao filho um “futuro melhor” nos Estados Unidos.
“Realmente, o mais doloroso foi deixar minha terra natal. Amo minha nação, conheço a situação que atravessa a Nicarágua. Tive que deixar igrejas, famílias, uma vida consagrada a Deus”, lamenta.
Mas está convencido de que um dia poderá regressar à Nicarágua — “sem medo de estar com as pessoas que deixei para trás”, sublinha.
Antes de 5 de setembro, Ramírez nunca havia embarcado em um avião. A primeira vez foi quando foi banido de seu próprio país.
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