Vilbrun Dorsainvil, 34 anos, não esconde o medo. A notícia falsa divulgada pelo candidato republicano Donald Trump de que haitianos, como ele, devoravam animais de estimação (cães e gatos) de norte-americanos aumentou o sentimento de insegurança entre os imigrantes em Springfield, no estado de Ohio. Com 80 mil habitantes, a cidade — localizada a 73 km da capital do estado, Columbus — abriga cerca de 20 mil haitianos. “Por aqui as pessoas podem comprar armas como se fossem biscoitos. E se houver um tiroteio em massa contra imigrantes haitianos? Além disso, e a nossa saúde mental?” Correspondência o médico, que trabalha como auxiliar de enfermagem no Springfield Regional Medical Center e aguarda licença para atuar como enfermeiro, prevista para maio de 2025.
Vilbrun trocou Porto Príncipe pelos Estados Unidos em abril de 2021. “As declarações de Trump estão abaixo de um ex-presidente do mundo livre. Ele trouxe notícias falsas para um debate presidencial. Foi ridículo”, disse ele. “Mas eu entendo, porque esse cara é racista e tenta prejudicar os imigrantes, principalmente os haitianos, de todas as maneiras que pode”. Ele reconhece que a comunidade haitiana enfrenta desafios reais em Springfield. “Precisamos de ajuda. Estas notícias infundadas são criadas para fins de distração.” Segundo Vilbrun, Trump decidiu espalhar o boato sobre animais de estimação para deixar os haitianos de Springfield em situação ainda mais vulnerável.
A rotina de Springfield mudou nos últimos dias. A pacífica cidade predominantemente branca do nordeste dos Estados Unidos foi abalada por ameaças de bomba contra escolas em áreas habitadas por haitianos e contra a prefeitura. Um restaurante tradicional de comida crioula teve que fechar as portas mais cedo, devido à insegurança. Neste sábado (14/9), dois hospitais, alvos de alertas sobre explosivos, foram isolados.
“Em Springfield, as pessoas (migrantes) que chegam comem os cães, comem os gatos, comem os animais de estimação”, declarou Trump durante o debate de 10 de setembro, levando o mediador a corrigi-lo imediatamente. Na sexta-feira (13), o presidente democrata Joe Biden pediu a Trump que parasse de alimentar as tensões. “Isto tem que parar, o que ele está fazendo, tem que parar. Não há lugar nos Estados Unidos para o que ele está fazendo”, alertou. No mesmo dia, Trump alertou que realizará uma deportação em massa de migrantes haitianos e venezuelanos, em Springfield e Auroca (Colorado), caso seja eleito em 5 de novembro. Também no sábado, ele voltou a dizer que Springfield foi “tomada” por imigrantes ilegais.
Racistas
Outro haitiano em Springfield que não quis ser identificado rejeitou as acusações do magnata republicano. “Acho que as declarações de Trump são desumanas e racistas. Uma expressão de ódio contra os haitianos. São absolutamente falsas”, disse ele à reportagem, via WhatsApp. “Agora, muitos haitianos querem deixar a cidade por causa do ódio e do racismo. Eles não se sentem mais seguros”.
Por sua vez, Vilès Dorsainvil, 38 anos, diretor executivo do Centro de Apoio e Ajuda à Comunidade Haitiana de Springfield, admitiu ao Correspondência que ficou “chocado” e “entristecido” ao mesmo tempo com as alegações de Trump. “É bom que tais declarações tenham sido rejeitadas pelas autoridades municipais, especialmente pelo presidente da Câmara, e pelo Departamento de Polícia de Springfield”, reforçou, via WhatsApp.
O irmão de Vilbrun, Vilès, argumentou que as pessoas em posições de poder nos EUA deveriam controlar a retórica. “O que dizem afecta todo o país, a comunidade e a saúde mental das pessoas, especialmente de um grupo vulnerável. Acreditamos na humanidade. Acreditamos que os líderes podem fazer melhor.” Ele alerta que os haitianos que vivem em Springfield ou outras cidades estão sujeitos a “todo tipo de perigo imaginável” após o discurso de Trump. “A polícia tem trabalhado para evitar a escalada e responder em tempo hábil no caso de um incidente em nossa comunidade”.
Harold Herald, 40 anos, voluntário do centro liderado por Vilès, fez questão de destacar ao Correspondência: “Não comemos gatos nem cachorros, nenhum animal doméstico”. “Esta declaração foi um choque para nós. O facto de termos ouvido isto de um ex-presidente causou-nos stress e encorajou-nos a defender a nossa condição de seres humanos”, explicou, por telefone. Ele citou danos mentais aos haitianos. “Muitos de nós queremos deixar Springfield. Eu e outros recebemos ameaças, seja por mensagens de celular ou verbalmente. São avisos do tipo: ‘Você tem que sair da cidade. Você não é bem-vindo aqui.’
O Herald acredita na força das instituições norte-americanas para garantir a proteção dos haitianos. “Precisamos de pessoas que nos ajudem a defender-nos da desinformação. Sabemos que os EUA são uma nação que respeita os direitos humanos e as liberdades civis. O futuro parece ameaçador, mas estamos comprometidos com a democracia”, acrescentou o haitiano, que nasceu no Porto -au-Prince e mora em Springfield desde 2022.
EU PENSO…
“Donald Trump sempre nos vê como imigrantes ilegais, mesmo estando aqui legalmente. O cara tem tanto ódio que não consegue ver o quanto contribuímos para a sociedade. Como enfermeira, posso dizer que precisamos de mais pessoas (imigrantes ) na indústria médica e em outras áreas, a nossa deportação teria um impacto negativo na sociedade e seria uma ameaça à liberdade e aos direitos civis.
Vilbrun Dorsainvil34 anos, auxiliar de enfermagem, natural de Porto Príncipe. Mora em Springfield desde 2021
(foto: Roberto Schmidt/AFP)
“Estamos aqui legalmente. Não sei como Trump vai deportar mais de 1 milhão de haitianos e outros imigrantes. Aqui em Springfield, cada haitiano se sente menos seguro desde que Trump começou a espalhar o boato. Eu me incluo nessa parte. Suas alegações são ruins para nossa comunidade.”
Vilès Dorsainvil38 anos, diretor executivo do Centro de Ajuda e Apoio à Comunidade Haitiana de Springfield
A ORIGEM DOS RUMORES
Uma publicação na rede social X —proibida no Brasil— acabou sendo replicada por políticos do Partido Republicano e inspirou Trump a mentir durante o debate de 10 de setembro. O texto alega, sem qualquer prova, que “a filha de um amigo do vizinho” viu um gato pendurado numa árvore para ser estripado e devorado. Segundo a mensagem, a cena foi vista do lado de fora de uma casa de uma família haitiana. Estava acompanhado da foto de um homem negro carregando o que parece ser um ganso.
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