Jogadores de futebol adolescentes ouvem o hino nacional russo antes de uma partida. Perto dali, artistas pintam um retrato do presidente russo, Vladímir Putinem uma parede durante um festival de graffiti.
Bem-vindo ao Burkina Faso, uma das nações africanas onde Rússia está fortalecendo suas operações para ganhar influência.
As evidências encontradas pela BBC mostram que a Rússia está a utilizar iniciativas culturais e mediáticas para atrair jornalistas, influenciadores e estudantes africanos, ao mesmo tempo que propaga informação enganosa.
Estes eventos estão a ser promovidos pela Iniciativa Africana, uma organização de comunicação social russa recentemente fundada que se descreve como uma “ponte de informação entre a Rússia e África“. Ela herdou estruturas anteriormente criadas pelo grupo mercenário Wagnero que foi desmontadoe os especialistas acreditam que esteja ligado aos serviços de segurança russos.
Registrado em setembro de 2023, um mês após o morte do líder Wagner, Evgeny Prigozhinnum acidente de avião, a Iniciativa Africana incorporou antigos funcionários do grupo mercenário e das empresas dissolvidas de Prigozhin.
As suas iniciativas centraram-se particularmente nos regimes militares do Mali, Níger e Burquina Faso no Sahel.
Na sequência de golpes de Estado recentes, estes países distanciaram-se dos aliados ocidentais, como a França, criticando as suas intervenções falhadas contra grupos jihadistas e o legado colonial. Em vez disso, voltaram-se para a Rússia.
Paralelamente aos eventos culturais locais, a Iniciativa Africana mantém um site de notícias com artigos em russo, inglês, francês e árabe, bem como um canal de vídeo e cinco canais Telegram — um dos quais tem quase 60 mil assinantes.
Alguns canais do Telegram foram “reciclados” de canais mais antigos criados pela empresa de Prigozhin. Foram os primeiros a promover o grupo paramilitar do Ministério da Defesa russo, Africa Corps, que substituiu efectivamente a ala militar de Wagner na África Ocidental.
Não faltam narrativas pró-Kremlin e informações enganosas, especialmente sobre os Estados Unidos.
Artigos publicados no website da Iniciativa Africana sugerem, sem provas, que os Estados Unidos estão a utilizar África como campo de produção e teste de armas biológicas, com base em campanhas de desinformação do Kremlin, há muito desacreditadas.
Um texto repete as alegações infundadas do Kremlin sobre a transferência de laboratórios biológicos americanos da Ucrânia para África.
Outro afirma, sem provas, que os laboratórios biológicos dos Estados Unidos no continente estão a aumentar, alegando que “sob o pretexto de investigação e projectos humanitários, o continente africano está a tornar-se um campo de testes para o Pentágono”, sugerindo que o país está envolvido em operações secretas experimentos biológicos na região.
Embora os esforços de propaganda de Prigozhin tenham como alvo principal a França, a Iniciativa Africana “visa os americanos em maior grau”, diz o investigador Jedrzej Czerep, chefe do Programa para o Médio Oriente e África no Instituto Polaco de Relações Internacionais.
“É muito mais antiamericano.”
Guerra ‘Tour’
Em Junho, um grupo de bloggers e jornalistas de oito países foi convidado para uma “visita de imprensa” de sete dias pelas áreas ocupadas pela Rússia na Rússia. Ucrânia.
A viagem foi organizada pelos meios de comunicação estatais russos e pelas autoridades russas que foram alvo de sanções ocidentais — os jornalistas visitaram a sede da Iniciativa Africana em Moscovo.
“África não estava recebendo muita informação [sobre a guerra]”, disse Raymond Agbadi, blogueiro e cientista de Gana que estudou na Rússia e participou do “tour de imprensa”, à BBC.
“A informação que recebemos não foi suficientemente convincente para compreendermos a verdadeira razão da guerra”.
A viagem também incluiu um jornalista do Gana e um do Mali. O influenciador americano Jackson Hinkle, um defensor declarado de Putin que espalhou várias alegações falsas sobre a Ucrânia, também esteve presente.
“Eles voltaram exaustos, mas satisfeitos”, escreveu um site de notícias pró-Kremlin que cobriu a viagem.
Depois de visitar Moscou, os jornalistas percorreram 1.250 quilômetros até a cidade portuária ucraniana de Mariupol, na região de Donetsk. Depois foram para cidades da região de Zaporizhzhia – todas as áreas que foram capturadas pela Rússia no início de sua invasão em grande escala da Ucrânia.
Durante a visita, os jornalistas foram acompanhados por autoridades russas e viajaram com os militares russos em veículos marcados com um “Z” – símbolo da invasão russa da Ucrânia.
Em Maio, a Iniciativa Africana já tinha organizado uma “viagem de imprensa” separada a Mariupol, destinada a uma delegação de bloggers malianos.
As viagens de imprensa para jornalistas organizadas por vários países são uma ferramenta bem conhecida para tentar vender as opiniões de uma nação.
Mas embora “a mídia ocidental faça muito treinamento progressivo [para jornalistas] para relatar temas importantes que se tornaram preocupações globais, a Rússia utiliza essas visitas guiadas como forma de propagar certas narrativas”, afirma Beverly Ochieng, analista da consultoria Control Risks e do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS). ), observando que a China mantém iniciativas semelhantes.
O facto de os jornalistas africanos reportarem as suas viagens dá uma “impressão de autenticidade” porque “chegam ao público com uma linguagem que reconhecem”, em vez de parecerem fazer parte de “uma campanha mais ampla usada para retratar a Rússia de uma forma positiva”, explica Ochieng. .
Em artigos publicados desde a viagem, os jornalistas africanos referem-se às cidades ucranianas ocupadas pelas forças russas como “zonas de conflito russas” – e citam funcionários instalados na Rússia, fazendo eco da propaganda estatal russa e apresentando a visão do Kremlin sobre as fronteiras da Rússia. Ucrânia.
Num artigo publicado no JoyOnline, um website em língua inglesa operado pelo Multimedia Group, o jornalista ganês Ivy Setordjie afirma que a região ucraniana de Zaporizhzhia [cuja capital está sob controle ucraniano] está “localizado no sul da Rússia europeia”.
À BBC, ela diz discordar que as regiões tenham sido anexadas ilegalmente pela Rússia, afirmando que os seus relatórios são um reflexo do seu próprio julgamento — e “não tendenciosos” em relação ao país.
Artes marciais e graffiti
Além das “visitas de imprensa” dos meios de comunicação social, as afiliadas locais da Iniciativa Africana no Sahel têm participado activamente em esforços de sensibilização comunitária destinados a promover a imagem da Rússia na região.
A BBC tem monitorizado os canais Telegram e as páginas do Facebook da Iniciativa Africana, onde são partilhados vídeos, imagens e relatos do seu trabalho local.
No Burkina Faso, encontrámos provas de um torneio de futebol, no qual foi tocado o hino nacional russo; “aulas de amizade” nas escolas, nas quais os alunos aprendem sobre a Rússia; uma competição de “sambo”, uma arte marcial soviética; cursos de primeiros socorros para cidadãos e policiais; e um festival de graffiti, no qual os participantes desenharam o presidente russo, Vladimir Putin, ao lado de Thomas Sankara, ex-líder de Burkina Faso. Todos os eventos foram patrocinados pela Iniciativa Africana.
As imagens também mostram membros da Iniciativa Africana distribuindo suprimentos aos moradores locais e exibindo o documentário nos bairros. turistasobre um grupo de instrutores Wagner na República Centro-Africana.
Quem está por trás da Iniciativa Africana?
“A ideia original do Corpo Africano era apagar todas as estruturas militares que Prigozhin tinha desenvolvido e substituí-las por algo novo. A Iniciativa Africana, muitas vezes servindo como o seu braço mediático, foi mais flexível e ficou feliz em reutilizar todos os recursos que já existia”, diz Czerep, do Instituto Polonês de Relações Internacionais.
Segundo ele, a agência federal de segurança russa, FSB, desempenha um papel importante na nova organização. O diretor e editor-chefe da Iniciativa Africana é Artyom Kureyev, identificado pelos especialistas russos como um agente de segurança russo. Kureyev está ligado ao Valdai Club, um grupo de reflexão com sede em Moscovo próximo de Putin.
O site da Iniciativa Africana lista Anna Zamaraeva, ex-assessora de imprensa da Wagner, como editora-chefe adjunta.
Viktor Lukovenko, conhecido como um dos “tecnólogos políticos” de Prigozhin, fundou o escritório da Iniciativa Africana no Burkina Faso, mas deixou o cargo nos últimos meses. Ex-nacionalista russo com passado criminoso, Lukovenko cumpriu cinco anos de prisão por um ataque em Moscou a um cidadão suíço que morreu mais tarde.
Contactámos a Iniciativa Africana para comentar este relatório. O escritório em Moscou confirmou que recebeu nossas perguntas, mas as respostas não chegaram até nós por e-mail. A Iniciativa Africana reagiu ao relatório da BBC num artigo no seu website, citando uma resposta que disse ter enviado à BBC.
A organização afirmou que as suas “actividades humanitárias no Sahel, como o campeonato de futebol” visavam “melhorar o futebol russo e recrutar novos jogadores” e que o objectivo das exibições de filmes e das aulas escolares é apresentar ao povo de África “o grande cultura russa”. .
A organização reiterou e defendeu as histórias destacadas pela BBC como enganosas, mas não forneceu novas provas. Ela referiu-se à constituição russa e às leis russas como justificação para a sua terminologia quando se referiu às áreas da Ucrânia ocupada como território russo.
Em Fevereiro, em resposta a um relatório do Departamento de Estado dos EUA, um artigo publicado no website da Iniciativa Africana afirmava que o seu conselho editorial “insiste que o seu objectivo é difundir o conhecimento sobre África na Rússia e popularizar a Rússia nos países africanos”. A intenção, segundo eles, é dar a “vários africanos uma oportunidade de serem ouvidos, incluindo as suas críticas aos países ocidentais”.
Entretanto, a organização continua a intensificar o seu alcance no Sahel. Na última semana de Agosto, cerca de 100 estudantes no Burkina Faso participaram numa palestra sobre oportunidades de formação na Rússia.
“Aprendi sobre a cultura da Rússia e a relação entre os nossos governos”, disse um adolescente sorridente vestindo uma camiseta com o logotipo da Iniciativa Africana num vídeo gravado após a discussão.
Atualização em 12 de setembro: Este artigo foi atualizado com comentários da Iniciativa África
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