Das muitas revoltas e rebeliões de século 19 No Brasil, poucos viram um episódio tão vil e covarde como o chamado Massacre de Porongos, emboscada que matou mais de cem soldados negros durante a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul.
Também conhecida como Revolução Farroupilha, a revolta durou dez anos (1835-1845), tornando-se a mais longa guerra civil da história do país. De um lado estava o governo imperial brasileiro. Por outro lado, a elite gaúcha está insatisfeita com os altos impostos cobrados sobre seus produtos.
Após a declaração de independência da então província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em 1836, os Farroupilhas perceberam que não havia homens suficientes para fazer frente às tropas imperiais. Por esta razão, os republicanos começaram a cooptar os negros escravizados. Mas não o seu.
“Em vez de abrir mão do próprio trabalho, os farroupilhas capturaram os negros dos adversários, que serviam aos imperiais ou estavam fugitivos, com a promessa de liberdade após o fim da guerra”, explica o jornalista Juremir Machado da Silva, autor de História Regional da Infâmia: o destino dos farrapos negros e outras iniquidades brasileiras (L&PM, 2010).
Os negros, portanto, não lutaram pelos ideais farroupilhas, mas pela chance de liberdade. Embora também atuassem como soldados de infantaria (soldados permanentes), acabaram conhecidos na história como “lanceiros negros”.
Estima-se que, ao final da guerra, representavam até um terço das tropas farroupilhas, ou aproximadamente 10 mil homens. Era praticamente metade do contingente imperial.
Para responder à crescente participação dos negros, os imperiais decretaram a “Lei do Chicote” em 1838. Ela determinava que cada escravo preso como parte das forças rebeldes receberia de 200 a 1.000 chicotadas.
A ameaça não diminuiu o ímpeto dos escravos, que continuaram a juntar-se às fileiras rebeldes. Mas, apesar da grande utilidade nas batalhas, os negros acabariam se tornando um “problema” para os farroupilhas. Especialmente quando ficou claro que esta seria uma guerra perdida.
A traição de Porongos
Vários conflitos durante a Revolução Farroupilha ocorreram na região da campanha gaúcha, faixa do bioma pampa próxima à fronteira com o Uruguai, com seus campos repletos de montanhas e coxilhas.
Foi no topo de um deles, conhecido como Cerro dos Porongos, localizado no atual município de Pinheiro Machado, que ocorreu um dos ataques mais violentos da Guerra dos Farrapos.
Há 176 anos, na madrugada do dia 14 de novembro de 1844, uma esquadra de lanceiros negros acampados no Cerro dos Porongos foi surpreendida e destruída pelas tropas imperiais.
Pouco mais de cem homens negros foram assassinados. Aqueles que não fugiram para os quilombos ou para o Uruguai acabaram encaminhados à Justiça do Rio de Janeiro, onde permaneceram escravizados até a Lei Áurea, 43 anos depois.
Há controvérsia sobre o que facilitou o Massacre de Porongos. A maioria das evidências históricas, porém, indica que o massacre foi resultado da traição do general David Canabarro, homem forte dos Farroupilhas.
Na altura, reconhecendo a sua derrota iminente, os rebeldes tentavam negociar uma anistia com o império. O governo de Dom Pedro 2º prometeu pensar na proposta. Entre as condições para a indução estava o retorno dos escravos capturados.
O problema é que a exigência não agradaria a muitos dos líderes rebeldes, constrangidos com a demissão, nem aos negros a quem os farroupilhas haviam prometido liberdade.
Para resolver o impasse, Canabarro teria feito acordo com os imperiais. “Ele escreveu ao Barão de Caxias, traçando data e local para um ataque ao acampamento negro”, diz o historiador Jorge Euzébio Assumpção, autor de Pelotas: Escravidão e Charqueadas 1780-1888 (FCM Editora, 2013).
Além de conivente com os imperiais, Canabarro relativizou os avisos de aproximações inimigas e desarmou os lanceiros negros na véspera do ataque. O general alegou que as munições antigas seriam substituídas por outras mais novas e, assim, entregou os guerreiros negros aos imperiais.
O general farroupilha nunca deu muitas explicações sobre o ocorrido. Seus defensores contam que, no momento do ataque, o general estava ocupado como uma das vivanderas (mulheres que acompanham as tropas com a missão de cozinhar, curar feridas e rezar pelos moribundos). E que, por esse motivo, ele não teria sofrido a carnificina.
O ataque foi a gota d’água não só para os soldados negros, mas também para a própria Revolução Farroupilha.
“A luta de Porongos, que foi mais uma matança de um lado do que uma luta, dispersou a principal força republicana e demonstrou que a rebelião estava morta”, escreveu Tristão de Alencar Araripe em suas memórias A Guerra Civil no Rio Grande do Sulpublicado em 1881.
O tratado de paz foi selado quatro meses após o Massacre de Porongos, em 28 de fevereiro de 1845, quando Canabarro assinou o acordo confiando na “palavra sagrada” e no “coração magnânimo” de Dom Pedro 2º.
Herança amaldiçoada
Todos os anos, no Rio Grande do Sul, é comemorada a tradicional Semana Farroupilha, quando o povo gaúcho realiza festas e acampamentos que celebram e relembram os ideais, a república e o grito de guerra ecoados em 20 de setembro de 1835.
O Massacre de Porongos, porém, ainda é esquecido pela maioria das atividades promovidas nos Centros de Tradições Gaúchas (CTG) e acampamentos espalhados pelo Estado. Para se ter uma ideia, foi somente em 2004 que foi erguido em Porongos o Memorial dos Lanceiros Negros, um pequeno monumento em homenagem aos guerreiros mortos na emboscada.
“Há uma clara intenção política de não abordar este tema durante as festividades de setembro”, afirma o historiador Jorge Euzébio Assumpção. “Essa sonegação fiscal histórica acontece porque os farroupilhas são um símbolo de poder no Rio Grande do Sul, e falar em traição contra os negros é desmistificar o gauchismo”.
Porém, Porongos não foi exatamente a única traição dos Farroupilhas contra o povo negro, segundo Juremir Machado da Silva. “Nesta revolução que muitos dizem ser abolicionista, vários negros foram vendidos no Uruguai para financiar o movimento”.
Embora ainda desconhecida de muitos brasileiros (e de muitos gaúchos, aliás), a história do Massacre de Porongos tem ganhado cada vez mais relevância, principalmente devido às pesquisas históricas e ao crescimento do movimento negro.
Para Juremir Machado, o massacre dos lanceiros é apenas um tijolo do racismo estrutural construído ao longo do tempo.
“A traição dos farrapos, a aprovação em 1854 da lei que previa a prisão de quem ensinasse o negro a ler e escrever, a falta de um plano de inclusão após a abolição: essas e outras situações são legados que alimentam o desrespeito que ainda coloca os negros, por assim dizer, em posição secundária”, afirma o jornalista.
“No entanto”, acrescenta, “ver o empoderamento dos negros na TV, na literatura ou na massa popular nos protestos de João Alberto Freitas (um homem de 40 anos que morreu após ser espancado por seguranças de um Carrefour unidade, no Porto Alegre) mostra que as coisas estão a mudar lentamente, mas estão a mudar.”
*Este texto foi publicado originalmente em 13 de dezembro de 2020 e republicado em 20 de setembro de 2024
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