O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cumpriu o tradição e abriu, mais uma vez, a série de discursos de chefes de estado e de governo na Assembleia Geral da ONU.
Usando gravata com as cores da bandeira brasileira, Lula falou por quase 20 minutos e aproveitou o púlpito para enviar algumas mensagens ao mundo, reafirmando o Brasil como mediador de conflitos e revisitando discursos anteriores, mencionando o luta contra a fome.
Christopher da Cunha Bueno Garman, diretor executivo para as Américas da consultoria Eurasia Group, diz que no geral o presidente fez um discurso “disciplinado”, falando apropriadamente sobre governança, sustentabilidade e fome. “Estes são temas que ressoam em todo o Sul global.”
Outro tema do momento, porém, ficou de fora do discurso do presidente: o delicado situação política na vizinha Venezuela.
Lula também não conseguiu esconder alguns constrangimentos. Explicamos, ponto por ponto, as mensagens e fragilidades do discurso do presidente em Nova York.
Acima da lei
O presidente foi incisivo ao criticar, sem citar nomes, a postura da rede de Elon Musk, a X, no Brasil. Em meio ao embate entre o bilionário e o Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu a rede social no Brasil No final de agosto, Lula defendeu “o direito de legislar, julgar disputas e fazer cumprir regras em seu território, inclusive no ambiente digital”.
“O futuro da nossa região depende, acima de tudo, da construção de um Estado sustentável, eficiente, inclusivo, que enfrente todas as formas de discriminação. Que não se deixe intimidar por indivíduos, empresas ou plataformas digitais que se considerem acima da lei”, afirmou o presidente. .
O presidente não mencionou nome ou empresa, mas deixou claro que defende a regulamentação das redes, enquanto o Manobra X para retomar operação no Brasil. “A liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras”, disse o presidente.
Uma proposta de lei para regulamentar as redes sociais está atualmente parada na Câmara dos Deputados, cujo presidente, Arthur Lira, acompanhava o petista no plenário da ONU.
O tema também será abordado por Lula em evento co-patrocinado com a Espanha, sobre extremismo digital de direita radical e democracia.
“O futuro da nossa região depende, acima de tudo, da construção de um Estado sustentável, eficiente, inclusivo, que enfrente todas as formas de discriminação. Que não se deixe intimidar por indivíduos, empresas ou plataformas digitais que se considerem acima da lei”, disse Lula.
Para o brasilianista Brian Winter, editor da revista Américas trimestralmenteo fato de Lula dar tanta importância ao tema demonstra o quanto ele acredita que o bilionário pode ter afetado a reputação internacional do Brasil, acusando o país de ferir a “liberdade de expressão” dos brasileiros.
Ainda segundo Winter, como os movimentos mais recentes de Musk foram recuos, Lula provavelmente vê a situação como uma vitória para seu governo.
Diplomatas brasileiros que conversaram em particular com a BBC News Brasil disseram que o caso seria mencionado em um compromisso com líderes da Espanha, Chile, Canadá e França, que também enfrentam ataques da direita radical, como um sucesso na repressão às milícias digitais.
Já para Garman, esse foi o ponto mais fraco do discurso do presidente brasileiro.
“Estou um pouco preocupado com o tom nacionalista. Países como o Brasil precisam fazer parcerias com essas empresas, e esse foco em uma certa autossuficiência, o nacionalismo, é lamentável”, disse o analista.
“É um governo que vê oportunidades, mas falha quando vê mais riscos do que oportunidades e isso pode dificultar parcerias com empresas de tecnologia de ponta.”
O analista não acredita, porém, que esse discurso possa causar algum ruído no mercado ou quaisquer consequências por enquanto. Mas ele diz que será necessária alguma flexibilidade nesta área.
“Ou os países formam parcerias para incorporar a tecnologia mais rapidamente ou perderão”.
Gaza e Ucrânia
Lula chamou a atenção para o conflito entre Israel e a Palestina, qualificando o que está acontecendo em Gaza e na Cisjordânia de “uma das maiores crises humanitárias da história recente, e que agora se expande perigosamente para o Líbano”.
Em tom diplomático, o presidente afirmou que “o que começou como uma ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes, tornou-se um castigo coletivo para todo o povo palestino”.
“O direito à defesa transformou-se no direito à vingança, o que impede um acordo para libertar os reféns e adia o cessar-fogo”.
O presidente, porém, evitou usar termos polêmicos como genocídio, Holocausto e crimes de guerra, que já havia adotado anteriormente para descrever a situação, gerando uma crise diplomática com Israel.
A delegação israelense não aplaudiu em nenhum momento a fala do brasileiro.
Ainda sobre os conflitos internacionais, Lula afirmou que “o Brasil condenou firmemente a invasão do território ucraniano”, ressaltando que a Rússia e a Ucrânia devem abrir negociações diplomáticas para encerrar o conflito.
A posição de Lula o separa do presidente americano Joe Biden nesta questão, já que os Estados Unidos enviou secretamente armas para defender a Ucrânia.
Por outro lado, o brasileiro se aproxima da China, lembrando que os dois países traçaram seis pontos para estabelecer um processo de diálogo e acabar com as hostilidades na Ucrânia.
Reforma da ONU
O presidente trouxe, mais uma vez, uma demanda histórica para a diplomacia brasileira: a reforma da ONU e do Conselho de Segurança, nos quais o país não tem assento permanente.
“A exclusão da América Latina e de África dos assentos permanentes no Conselho de Segurança é um eco inaceitável das práticas de dominação do passado colonial”, afirmou o presidente.
Lembrou ainda que nunca na história da instituição uma mulher ocupou o cargo de secretária-geral. “Estamos chegando ao final do primeiro quartel do século 21 com as Nações Unidas cada vez mais esvaziadas e paralisadas”, disse Lula.
O Conselho de Segurança da ONU é composto por 15 membros, cinco dos quais são permanentes: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Estes países têm poder de veto, o que significa que podem, com o seu voto, bloquear uma decisão do conselho.
Os demais membros são temporários, eleitos a cada dois anos pela Assembleia Geral, e não gozam do mesmo privilégio.
O poder de veto é justamente o que poderia impedir uma possível reforma, segundo o professor de Relações Internacionais, Dawisson Belém Lopes.
As restrições
Embora o Brasil esteja sufocado por incêndios há meses e o governo tenha sido criticado pela demora na resposta, Lula abordou o assunto no início de seu discurso, reconhecendo que falta ação.
“O meu governo não externaliza responsabilidades nem abdica da sua soberania. Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer mais”, reconheceu.
Para Garman, o momento é constrangedor para um discurso em um órgão como a ONU, mas mesmo assim afirma que Lula “lidou com habilidade, reconhecendo e responsabilizando-se pelos incêndios no Brasil”.
“Claro que é constrangedor estar em situação de incêndios em todo o Brasil. Mas pelo menos no discurso ele ficou feliz pela forma como lidou com isso”.
Lula também mencionou enchentes no Rio Grande do Sul como exemplo, juntamente com os incêndios, da necessidade de medidas mais urgentes e profundas por parte dos líderes globais.
O que ele pretende é que os países ricos — e os maiores poluidores do mundo — se comprometam a pagar aos países emergentes pelos serviços de conservação florestal e pela redução das emissões de gases com efeito de estufa.
Embora trate o tema como prioridade em sua agenda internacional, Lula e seu governo vivem uma contradição entre o apelo dos ambientalistas e a necessidade de garantir receitas provenientes da exploração de combustíveis fósseis: a Petrobras aumentou a produção de barris de petróleo, o que atingirá o pico em 2030.
Além disso, o presidente recebeu diretores da petroleira Shell, interessada em explorar poços na margem equatorial brasileira, em reunião extraordinária em Nova York. O encontro foi revelado pela BBC News Brasil.
O silêncio
Sobre a América Latina, Lula disse que a região vive uma segunda década perdida e condenou mais uma vez o embargo unilateral dos EUA a Cuba, classificando-o como “injustificado”, além de citar a grave situação no Haiti.
No entanto, o presidente evitou falar da Venezuela, que vive uma crise escalada de tensão depois da realização de eleições presidenciais cujo resultado anunciado pelo regime de Nicolás Maduro não foi reconhecido no cenário internacionalincluindo o Brasil.
O tema gerou divisão entre os próprios diplomatas brasileiros: por um lado, alguns argumentavam que Lula deveria levantar a questão, até porque queria liderar mediações para uma solução. Por outro lado, os assistentes argumentaram que a sessão plenária da ONU é demasiado polarizada e que qualquer menção ao assunto resultaria em críticas ao presidente.
Para Garman, “não falar da Venezuela é um reconhecimento tácito de que o Brasil está numa posição muito difícil sobre o assunto”.
Já Brian Winter vê a capacidade do presidente brasileiro de saber quando permanecer calado, já que, nas suas palavras, Lula está no meio de um “delicado jogo de denunciar eleições fraudulentas sem romper relações com Caracas”.
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