Foi um clima de forte polarização política que São Paulo 90 anos atrás. Por um lado, os activistas do integralismoa reinterpretação brasileira do fascismo. Por outro lado, os antifascistas, frente que reuniu socialistas, comunistasanarquistas e defensores de outras correntes de esquerda.
Faíscas e atritos transformaram-se em guerra em 7 de outubro de 1934 no centro da cidade. Com sete mortos e cerca de 30 feridos, o episódio ficou para a história como “a batalha da Praça da Sé”.
Ou, sarcasticamente, a “fuga das galinhas verdes”.
“O que aconteceu refletiu o clima político polarizado do Brasil, que acompanhou as tensões ideológicas do período pré-Segunda Guerra Mundialcom o crescimento, na Europa, de regimes totalitários como o fascismo e o comunismo. Essa polarização também se manifestou no Brasil”, afirma o historiador Vitor Soares, criador do podcast, à BBC News Brasil História em meia hora.
A Ação Integralista Brasileira (AIB), um grupo político brasileiro ultranacionalista e tradicionalista, católico e de extrema direita, inspirada no fascismo italiano, havia marcado para esse dia um comício na praça de São Paulo para comemorar os dois anos de sua fundação — em 7 de outubro de 1932, o escritor e jornalista Plínio Salgado (1895-1975) publicou o Manifesto Integralista, com as bases do movimento.
A partir de então, como costumavam usar uniformes verdes, seus detratores passaram a apelidá-los de “galinhas verdes”.
Os antifascistas souberam do acontecimento e começaram a organizar uma contramanifestação. Pelo menos oficialmente, não houve coordenação centralizada. Mas o objectivo dos esquerdistas era arruinar a celebração integralista.
“A organização e, sobretudo, o sucesso [da contramanifestação]são reivindicados por diferentes indivíduos, grupos e partidos políticos. Essa disputa é um indício de que a decisão tornou-se menos relevante à medida que a adesão social ultrapassou em muito o alcance dos líderes políticos, então presentes na cidade de São Paulo”, diz à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor do Estado de São Paulo Universidade (Unesp).
“O núcleo do apelo era um pequeno grupo de activistas dissidentes ou insatisfeitos com a linha política do movimento comunista na capital”, acrescenta o historiador.
Entre os nomes estavam os jornalistas e ativistas Mário Pedrosa (1900-1981), Lívio Xavier (1900-1988) e Fúlvio Abramo (1909-1993).
“O Sindicato Gráfico de São Paulo patrocinou a logística de divulgação e coleta”, diz Martinez.
“Naquela época, o sindicato dos trabalhadores gráficos tinha uma grande base social, reunindo trabalhadores das oficinas de composição, impressão e distribuição, além de revisores e jornalistas. Ou seja, uma composição de consciência social e de elaboração política, unida em torno comunicação de massa.”
Contexto
As sementes do conflito foram plantadas pelo menos 10 anos antes. Embora o integralismo ainda não estivesse totalmente organizado na década de 1920, os confrontos entre fascistas brasileiros e ativistas de esquerda eram recorrentes desde aquela década. O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi fundado em 1922.
Na década de 1920, o PCB comandou o chamado Comitê Antiguerra. Na mesma linha de frente atuava o Comitê Antifascista, que incluía a Federação dos Trabalhadores de São Paulo, a Frente Única Antifascista, a Liga Comunista, entre outras organizações de esquerda, incluindo alguns sindicatos.
O atrito não se limitou às ruas. Ganharam páginas na imprensa e os debates eram comuns nas rodas de conversa intelectual.
Eventos públicos, desde conferências a comícios, ocorriam com frequência, com o objetivo de conquistar seguidores e chamar a atenção das massas.
“Houve uma tentativa de ambos os grupos de dominar o movimento operário. Os integralistas, que eram os fascistas brasileiros, decidiram atuar exatamente onde os comunistas buscavam maior apoio, ou seja, na classe trabalhadora”, explica à BBC News Brasil o filósofo e o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Pelo menos desde 1933, há registros de relatos de agressões de ambas as partes, principalmente em eventos. A partir de abril de 1934, os integralistas passaram a realizar desfiles cívicos no Rio e em São Paulo, com o objetivo de demonstrar sua força.
No dia 3 de outubro, quatro dias antes do comício paulista, um desfile integralista em Bauru, no interior, com uma chamada “palestra doutrinária” do próprio Salgado, terminou em briga, deixando um morto e pelo menos quatro feridos.
Esse era o clima naquele 7 de outubro, portanto.
Segundo Ramirez, a tensão foi consequência do facto de os dois grupos diametralmente opostos terem anunciado “uma manifestação para divulgar as suas ideologias”, com um apelo massivo a apoiantes.
Grupos de esquerda realizaram assembleias entre seus membros e decidiram, juntos, que seria realizada uma contramanifestação para acabar com o partido dos fascistas brasileiros.
Foi montada uma operação logística que incluiu a distribuição de armas aos dirigentes destas associações. Entre eles estava o militar e licenciado em Direito João Cabanas (1895-1974), um dos principais nomes do movimento tenente. Ele foi encarregado de lidar com o plano de ação estratégico.
Outros nomes fortes da esquerda que participaram da batalha foram o líder comunista Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970) e o jornalista e ativista trotskista Hermínio Sacchetta (1909-1982).
Segundo o historiador Victor Missiato, membro de grupo de pesquisa da Unesp e professor do Colégio Mackenzie Tamboré, dentro do movimento integralista “também havia gente armada”. “Foi uma polarização muito grande. E uma polarização armada voltada para o confronto, com perspectiva de uma insurreição armada”, comenta, à BBC News Brasil.
O confronto de 7 de outubro
Desde a manhã do dia 7, os contramanifestantes já haviam se posicionado em pontos estratégicos do centro de São Paulo.
A partir das 14h, quando os integralistas já estavam em bom número na praça, ouviram-se gritos provocativos de “fora as galinhas verdes” e “morra com o integralismo”. Houve uma reação de extremistas de direita.
Logo estourou um motim, com socos, bastões e ataques de todos os lados. Houve intervenção policial e tiros foram ouvidos.
“A praça estava sob forte vigilância, com centenas de policiais armados tentando controlar a multidão”, diz Soares.
O evento começou mesmo assim, com desfile de integralistas na escadaria da catedral da Sé e cantado o hino do grupo.
Logo os manifestantes de esquerda tentaram interromper a celebração. Uma metralhadora foi disparada e três guardas civis foram atingidos, com a morte de um deles.
A partir daí, a situação ficou completamente fora de controle e o que era para ser um comício se transformou em uma batalha em praça pública. No total, três integralistas, três policiais e um militante comunista acabaram mortos.
“Há vários relatos diferentes. Alguns dizem que a frente antifascista começou a atirar, outros dizem que [o conflito] Já era algo planejado por causa do que aconteceu dias antes [em Bauru]alguns relatam que o primeiro tiro foi da polícia que, a princípio, aceitava duas manifestações simultâneas no centro de São Paulo”, aponta Missiato. “Varia muito dependendo do relato”.
Ele ressalta, porém, que houve “uma preocupação armada do grupo de esquerda em enfrentar a manifestação dos integralistas”.
“A mobilização foi um sucesso. Devemos considerar o clima político que prevalece na cidade. A derrota de 1932 [na Revolução Constitucionalista]a recomposição partidária da elite cafeeira paulista nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1933, a organização sindical, as reivindicações dos trabalhadores, a pacificação das tensões entre [o presidente Getúlio] Vargas e as lideranças tradicionais paulistas, destronadas em outubro de 1930″, contextualiza o historiador Martinez.
“No topo ou na base da sociedade, a disputa política era acirrada e conflituosa. A presença e o crescimento do integralismo em São Paulo tornaram-se incômodos devido à sua competição com os outros dois pólos da política local: o popular e o liberal-conservador. O caráter messiânico dos integralistas ameaçava roubar as bases sociais, os discursos e a hegemonia política racionalizadora e abstrata dos direitos individuais e coletivos, alardeados tanto nos princípios do liberalismo conservador como nos do comunismo, do socialismo e do anarquismo.”
“O acontecimento ficou marcado como uma vitória simbólica dos antifascistas, pois os integralistas fugiram do local, o que levou a esquerda a chamar o episódio de ‘o bando de galinhas verdes’, numa referência pejorativa aos uniformes verdes dos integralistas” , lembra Soares.
Oposição a Vargas
A confusão na Praça da Sé foi uma importante introdução à resistência aos surtos ditatoriais do governo de Getúlio Vargas (1882-1954), que principalmente no período conhecido como Estado Novo, de 1937 a 1945, flertou com o fascismo.
“A Batalha da Praça da Sé, ocorrida em 1934, foi um marco na resistência ao governo Vargas e teve profundas consequências na articulação das forças políticas contra o autoritarismo.”, afirma o historiador Soares.
“Embora tenha sido um embate físico entre os integralistas da Ação Integralista Brasileira e grupos de esquerda, como a Frente Única Antifascista, o episódio deixou um legado importante na forma como a oposição ao governo Vargas se organizou”, contextualiza.
“O acontecimento resultou no imaginário de uma unidade que, para os comunistas e outros grupos, ali consolidaria, um ano depois, a Aliança Libertadora Nacional”, lembra Missiato. “E também levou a um aumento no número de integralistas, por outro lado”.
Soares vai um pouco além, lembrando que esse movimento de resistência ao fascismo, em parte, levaria à chamada Intentona Comunista, “uma tentativa de insurreição liderada pelo PCB, em novembro de 1935”. Levante esta que “foi rapidamente reprimida pelas forças governamentais”, embora tenha ecoado em cidades como Natal, Recife e Rio.
“A resposta de Vargas foi dura, aproveitando o fracasso da Intentona em justificar o aumento do controle autoritário”, afirma o historiador.
A importância da ‘frente unida’
Martinez avalia que a revolta da Catedral marcou “o exorcismo político, mas não ideológico” do integralismo, “especialmente em São Paulo”.
“O fantasma do integralismo não desapareceu, mas permaneceu arraigado nas instituições públicas e privadas de São Paulo: nos quartéis, na polícia, nas escolas e cursos superiores, nas associações religiosas, empresariais e profissionais, nos clubes recreativos e na imprensa”, disse ele. destaques.
“Por um lado, houve proibição de sair às ruas, mas a doutrina integralista encontrou apoio nas classes média e média alta de São Paulo”, acrescenta Martinez.
“Por outro lado, o principal enfrentamento ao fascismo e sua versão verde-amarela ocorreu em São Paulo através da organização de uma frente única multipartidária e política, em defesa de direitos e liberdades, abertamente contestada e atacada pelos integralistas. “
“Só nos anos seguintes a estratégia da frente única seria adoptada pelo movimento comunista internacional, depois das perseguições políticas na Alemanha, sob o regime nazi, instalado em 1933”, compara.
“Já era tarde demais, como provaram as suas experiências em França e Espanha. Nestes países, as frentes unidas provaram ser eleitoralmente eficientes, mas eram politicamente impotentes para contrabalançar a força adquirida pelo nazi-fascismo e a sua propagação na Europa.”
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