Demonstração da força do Estado contra as chamadas big techs; precedente internacional e ponto de preocupação com o suposto autoritarismo do Judiciário brasileiro.
Foi assim que analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliaram o desfecho (pelo menos temporário) da crise entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e Elon Musk, dono da X, após o fim da suspensão da plataforma no Brasil.
“Big tech” é o termo normalmente usado para se referir a grandes empresas de tecnologia como Google, Meta, X e Microsoft.
O fim da suspensão foi determinado nesta terça-feira (8/10) após a empresa cumprir uma série de determinações impostas pelo ministro Alexandre de Moraes. Até o início da noite de ontem, o acesso à plataforma ainda não havia sido restabelecido, o que deve acontecer gradualmente ao longo das próximas horas.
A suspensão da plataforma no Brasil, segunda maior democracia do continente americano e um dos países mais populosos do mundo, vinha sendo vista internacionalmente como um dos episódios mais concretos do constante embate entre grandes corporações do segmento de tecnologia e o poder dos estados nacionais.
No final de agosto, quando Moraes ordenou a suspensão de X em todo o país, o The New York Times classificou o caso como o “maior teste até agora para os esforços do bilionário [Musk] para transformar o lugar [o X] numa praça digital onde quase tudo é possível.”
Na avaliação de especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o resultado do teste foi claro: Musk foi obrigado a se curvar às decisões do Estado brasileiro.
Avaliam, porém, que a “vitória” do Estado brasileiro neste episódio não significa que não surgirão novos embates entre países e corporações como X e que, no futuro, o resultado poderá ser diferente.
“É uma luta constante”, disse Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP, à BBC News Brasil.
Precedente internacional e mensagem para empresas
Na avaliação da coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) Renata Mielli, a principal mensagem enviada pela forma como o STF autorizou a volta do X no Brasil é que as empresas não podem ficar acima dos Estados.
“Isso demonstra que nenhuma empresa está acima das instituições de um Estado. Cada país tem suas leis e as empresas precisam respeitar o marco regulatório. Os Estados não podem ser intimidados por chantagens ou ameaças de empresas”, disse Mielli à BBC News Brasil.
O CGI.br é um comitê criado em 2003 com o objetivo de estabelecer diretrizes sobre o uso e desenvolvimento da internet no Brasil e que conta com a participação de membros do governo, do setor privado e de organizações não governamentais.
Mielli disse acreditar que a forma como o caso foi tratado no Brasil deverá ter impacto internacional, já que o conflito vivido no país também ocorre em outros lugares.
“A mensagem do que aconteceu aqui ressoa internacionalmente porque a postura de algumas dessas empresas de tecnologia ou de mídia social é levar a situação ao limite na tentativa de não se submeter às regras locais. Vimos muitos países indicarem que adotariam a postura que o Brasil adotou caso as empresas decidissem não cumprir as regras locais”, disse Mielli.
Atualmente, X também enfrenta questionamentos na União Europeia e já foi alvo de decisões judiciais ou governamentais em países como a Índia, e na Turquia, onde X também acabou cedendo.
Na União Europeia, por exemplo, X foi acusado de potencialmente “enganar” os seus utilizadores ao conceder um crachá de verificação de conta no momento do pagamento.
O regulador de tecnologia do bloco europeu disse que os usuários podem ser induzidos a pensar que a identidade daqueles com o crachá azul foi verificada, quando na verdade qualquer um pode pagar por isso.
O regulador disse ter encontrado evidências de “atores maliciosos” abusando do sistema. Musk respondeu dizendo que as regras impostas pela União Europeia resultaram em “censura”.
João C. Magalhães, professor de Mídia, Política e Democracia da Universidade de Groningen, na Holanda, disse à BBC News Brasil que o resultado da crise entre o STF e X reforçou a tese de que em confrontos como esse a tendência é que os estados nacionais ganhar.
“No final das contas, é isso que acontece. O Estado sempre vence. São os Estados nacionais que detêm o poder de facto. Sempre que se imagina que as big techs são mais poderosas que o Estado, é preciso lembrar que elas só têm o poder que têm porque o Estado, de alguma forma, permitiu”, disse o professor.
Magalhães afirmou que a situação envolvendo X colocou tanto o STF quanto a rede social de Musk numa posição em que não havia outra decisão a ser tomada.
“Seria extremamente surpreendente se o STF aceitasse que uma empresa descumprisse uma ordem […] e para
“Apesar de parecerem poderosas, estas empresas não têm exércitos. Não podem obrigar as pessoas a consumir os seus produtos. O Estado tem o monopólio da força”, afirmou.
O professor Pablo Ortellado avalia que o caso brasileiro cria um precedente internacional.
“O Brasil mostrou que, com uma postura muito dura, é possível fazer com que as big tech se submetam às leis. Esse é um aspecto que considero positivo”, afirmou.
Pilares do resultado
Na avaliação de Ortellado, fazer Elon Musk “curvar-se” às leis brasileiras aconteceu por uma combinação de fatores.
“O primeiro fator é que a comunidade de especialistas no assunto no Brasil concordou com a decisão de suspender a plataforma. Apesar de haver alguma divergência, houve amplo apoio a esta decisão”, afirmou.
O segundo fator, segundo ele, foi a concordância de parte da imprensa.
“Não me lembro de ter visto nenhum editorial de qualquer grande jornal ou empresa de mídia se posicionando contra essa medida”, disse ele.
Segundo ele, esse consentimento teria apoiado a decisão da maioria da opinião pública.
O outro fator que ele listou foi econômico.
“Ele (Musk) tinha que entender que corria o risco de perder receita de um ator importante, já que o Brasil detém cerca de 15% do mercado global do Twitter. Além disso, Moraes começou a cobrar da Starlink (empresa de satélite de Musk) para fazê-la pagar as multas do Twitter. Isso começou a estrangular financeiramente a empresa. A OX viu que seria mais barato cumprir as regras”, disse Ortellado.
Para o professor João C. Magalhães, um fator importante para o STF não recuar na suspensão foi a politização em torno do tema.
“Havia a percepção de que Elon Musk não era apenas um empresário, mas um ator político que entra no contexto brasileiro como aliado do bolsonarismo e o bolsonarismo é visto como antidemocrático pela maioria no STF. A politização do caso é fundamental para entender por que o STF decidiu fazer o óbvio, que era cumprir a lei em vez de buscar a negociação”, disse.
Elon Musk é visto como uma pessoa próxima do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Os dois se conheceram pessoalmente no Brasil em 2022, durante a visita do empresário ao país.
Em seus perfis, Musk se posicionou a favor de Bolsonaro e ainda acusou o ministro Alexandre de Moraes de ter interferido no resultado das eleições presidenciais de 2022. Após a suspensão do X no Brasil, vários políticos de direita e políticos do campo de Bolsonaro saíram em defesa do empresário e criticaram o STF.
O outro lado da moeda
Para Pablo Ortellado, mais uma mensagem enviada a propósito de 2023.
Parte da decisão que levou à suspensão de X foi a reação de Moraes ao fato de X não ter cumprido suas ordens de suspender contas de pessoas investigadas no caso de janeiro de 2023.
“O ponto negativo desse caso é que a posição de Moraes prevaleceu e ele vem pesando a mão (nas suas decisões). Não desconheço o fato de que Musk tem uma agenda política, mas as alegações de X sobre proibições de contas eram verdadeiras. O banimento de contas da forma como estava sendo feito não tinha respaldo na tradição brasileira”, afirmou.
Ortellado disse que, até 8 de janeiro de 2023, o entendimento no Brasil era de que não havia censura prévia. Se alguma postagem ilícita for detectada, ela deverá ser excluída. Por conta do episódio, Moraes passou a ordenar o banimento de contas supostamente ligadas à publicação de mensagens de ódio ou contrárias à democracia.
“Presumir que uma conta vai cometer um delito e retirá-la do ar é censura prévia”, afirmou.
Ortellado avaliou que, considerando o contexto brasileiro, manter a suspensão de X até que a rede cumpra as determinações do Judiciário brasileiro envia um sinal de força. Esta força, no entanto, pode ter consequências em diferentes direções.
“O caso brasileiro abre um precedente importante para outros países do mundo. Isso pode ser usado de uma maneira boa ou ruim. A mensagem é que se você for forte o suficiente, as empresas cederão. Isto pode aplicar-se a países com regras razoáveis como a Europa. E podem aplicar-se a Estados autoritários”, afirmou.
Renata Mielli disse não saber se novos confrontos como o entre X e o STF acontecerão no Brasil, mas argumentou que a única forma de evitar crises como essa seria aprovar uma regulamentação para redes sociais, cujo projeto está paralisado no Congresso Nacional.
Ela mencionou que em 2023, diversas empresas do setor pagaram por publicidade e realizaram uma campanha na mídia para influenciar os parlamentares a não votarem um projeto de lei que visava regulamentar o funcionamento das redes sociais.
O projeto encontrou resistência de parlamentares de direita que argumentavam que as regras poderiam penalizar ativistas e políticos desta corrente política que utilizam as redes sociais para se manifestarem.
“Só há vacina contra este tipo de situação se tivermos legislação que regulamente as plataformas digitais. O Congresso Nacional, motivado por interesses próprios e pelo forte lobby das big tech, não gostou do projeto e fez com que a decisão do caso X caísse no STF”, disse.
Para Mielli, até que a regulamentação chegue, as empresas do setor deverão adotar uma postura mais cautelosa em relação ao cumprimento ou não de ordens da Justiça brasileira.
“Qualquer empresa que presta serviços no Brasil pensará duas vezes antes de voltar a medir forças com o Estado brasileiro. Não tenho dúvidas disso”, afirmou.
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