Para muitos, ele é apenas um nome relevante nas aulas de história escolar, principalmente quando se estudam os movimentos socioculturais da Europa no século XVI.
Para aqueles que professam a fé cristã fora do Igreja católicaPorém, mesmo que não saibam, é de fundamental importância.
Estamos falando de Martinho Lutero (1483-1546), monge Agostiniano germânico que acabou, de forma um tanto involuntária, promovendo o que ficou conhecido como Reforma Protestante, movimento que abriu as portas do religiãoquebrando o monopólio da Igreja Católica e permitindo a existência de várias outras igrejas cristãs no mundo ocidental.
De certa forma sem querer, porque ele próprio nunca pareceu querer romper com a Igreja Católica.
Mas, respeitado intelectual que era, propôs uma série de mudanças na organização do catolicismo da época. E o que deveria ser um movimento intramuros da fé católica acabou significando o nascimento de vertentes do cristianismo.
“Ele abriu uma porta, mas ele mesmo acabou vivendo as consequências disso”, comenta a historiadora Jaquelini de Souza, professora da Universidade Regional do Cariri e pesquisadora das Faculdades EST (antiga Escola Superior de Teologia), instituição da Igreja Evangélica. Igreja de Confissão Luterana no Brasil.
“Ele queria, na verdade, fazer uma reforma que, na sua opinião, fosse uma melhoria [da Igreja Católica]. Lutero não queria criar uma nova igreja, as suas 95 teses foram motivadas pelo grande amor que tinha pela Igreja Católica.”
Na época, Lutero já era um religioso renomado, com respeitável carreira acadêmica. Teólogo e doutor em Bíblialecionou desde 1508 na Universidade de Wittenberg (Alemanha) e, estudioso de grego e hebraico, trabalhou na tradução das escrituras.
Como padreparecia incomodado com o monopólio da fé que a Igreja Católica detinha, especialmente porque percebeu que havia uma mercantilização das indulgências, o perdão integral dos pecados que, naquele momento histórico, estava sendo negociado pelos religiosos em troca de pagamentos em dinheiro.
Em 31 de outubro de 1517, Lutero afixou 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Basicamente, ele questionou este comércio de graças e o poder absoluto da Igreja na fé popular — e afirmou que a Bíblia era o texto principal que deveria ser considerado, acima de qualquer autoridade papal.
A partir daí, o religioso passou a ser alvo de um longo processo até que, em 1520, o Vaticano ordenou a sua excomunhão.
Se a saída da Igreja Católica não estava nos planos do agora ex-monge agostiniano, o facto é que o movimento que acabou por criar levou ao surgimento de outras denominações cristãs.
Nesse sentido, pode-se dizer que o Luteranismo foi pioneiro, pois antes dele, no mundo ocidental, o Luteranismo cristandade era praticado apenas por católicos.
“Lutero promoveu o fim do monopólio católico em relação aos bens da salvação”, aponta o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Isto porque, principalmente ao longo do Idade Média Na Europa, o entendimento predominante era que, para ser salvo, era necessário ser batizado e seguir os ensinamentos da Igreja Católica. “Não estar na Igreja Católica era estar no inferno, era ser alguém privado da graça de Deus. Foi assim que funcionou”, acrescenta Moraes.
O lema latino era “extra ecclesiam nulla salus”, ou seja, vigorava a ideia de que não havia salvação fora da Igreja. “Lutero não queria romper com a Igreja, mas rompeu com ela, com essa ideia. E todo o processo levou à sua saída [do catolicismo]“, explica o teólogo.
Afinal, após a publicação das teses e do julgamento religioso, Lutero acabou excomungado. Em outras palavras, ele se tornou exatamente isso: alguém que estava fora da Igreja, portanto, numa condição de não salvo.
Mas o que ninguém imaginava é que ele encontraria o apoio de uma elite alemã e, em pouco tempo, cerca de três ou quatro anos depois, suas ideias já haviam encontrado solo fértil em tantas mentes e corações que uma nova religiosidade acabou surgindo.
“Um movimento que, finalmente, acabou com o monopólio católico”, afirma Moraes.
“O protestantismo nasceu assim, como um movimento plural sem papa”, aponta o teólogo. “E este é o legado de Lutero, um movimento de não obediência ao bispo de Roma, uma religiosidade cristã que não caiu sob o guarda-chuva católico. Não era mais necessário ser católico para ser salvo, pois, no novo entendimento, o O único mediador entre Deus e os homens é Jesuse não mais o papa.”
Fundamentos
“Nesse sentido”, acrescenta Moraes, “Lutero pode ser o pai de todas as igrejas que daí surgiram. de um movimento que rompe com a Igreja Católica”.
A fundação do luteranismo não era mais uma figura teocrática absolutista, neste caso, o Papa. Mas, sim, a Bíblia, ou seja, os textos considerados sagrados. “Nos fundamentos de Lutero está a centralidade da Bíblia”, comenta Moraes. E, claro, para contrariar o comércio de indulgências, a ideia de que a salvação vem da graça divina, da fé.
“Lutero acabou sendo a grande pedra angular para o surgimento de outras tradições cristãs porque para ele, entre a Bíblia e a autoridade papal, a primazia era a da Bíblia”, aponta Souza. “Obviamente, como professor de Bíblia, estudante universitário, médico, ele fazia a interpretação com base na exegese e na hermenêutica, tinha as regras na cabeça e nunca desconsiderou o texto dos Padres da Igreja, os escritos dos grandes doutores”.
O historiador lembra que, por outro lado, essa ideia de incentivar a livre interpretação da Bíblia também permitiu leituras equivocadas e interpretações superficiais que persistem até hoje.
“Lutero tinha em mente regras hermenêuticas de interpretação das sagradas escrituras e a importância de caminhar ao lado dos doutores da igreja, mas isso abriu caminho para outras pessoas, abriu a caixa de Pandora e ficou incontrolável”, afirma.
“Não era sua intenção. Não era sua intenção sequer criar uma nova Igreja, mas ele abriu a caixa de Pandora.”
Mas os investigadores sublinham que o próprio Lutero nunca pretendeu abandonar o catolicismo e muito menos criar a sua própria igreja. “Há uma tradição que diz que quando ele estava perto da morte e a igreja de quem seguia suas ideias já era chamada de luterana, ele não gostou”, diz Souza. “Ele disse que a igreja era de Cristo e não dele.”
O que seria então a igreja de Lutero?
“Acho que não existe. Não posso dizer que tal igreja seja luterana pura e todas as outras são versões, isso não existe pela história específica de cada localidade e como o luteranismo se desenvolveu”, afirma o historiador .
Para ela, a razão pela qual não existe uma igreja que siga Lutero corretamente é que o guia para quem pratica a religiosidade segundo esse preceito nunca é o fundador, mas sim a figura de Jesus Cristo.
Por outro lado, ela aponta algumas nuances que seriam características dos luteranos, em comparação com os católicos ou cristãos de outras denominações. “Eu diria liberdade de consciência, liberdade de viver a fé. Isso é forte no luteranismo. Os luteranos não aceitam o legalismo, mas vivem o que criam em liberdade, por amor”, comenta.
“A herdeira natural do Luteranismo é a Igreja Luterana, mas podemos dizer que o movimento inicial de Lutero acabou sendo apropriado e ressignificado por todas as igrejas ditas protestantes porque acabaram, de alguma forma, seguindo também esse caminho que foi aberta por ele”, completa Moraes.
“Lutero deixou um tesouro, que permite novas interpretações e novos significados porque estamos tratando desse negócio vivo que se chama religião”, acrescenta o teólogo.
Três pontos fundamentais
Souza enfatiza que houve três pontos fundamentais defendidos por Lutero, e que ainda ressoam fortemente em grande parte das igrejas protestantes contemporâneas.
A primeira foi a defesa da salvação pela fé, pela graça divina, pela compreensão de que Jesus Cristo se sacrificou pela salvação das pessoas.
Outra questão é o fundamento bíblico, que deve ser o norteador da religiosidade e cuja compreensão pode ser feita individualmente, por cada um, no que se costuma chamar de “exame livre” do escrituras sagradas.
Não é de surpreender que esse movimento tenha feito com que a Bíblia, antes comumente restrita ao latim, língua oficial do catolicismo, passasse a ganhar traduções para as línguas praticadas em cada país. Lutero, responsável pela tradução da escritura para o alemão, numa publicação de 1534, também é reconhecido como de extrema importância para a consolidação da língua ali praticada.
“Ele é o pai da língua alemã, o pai da pátria”, define o historiador.
“O terceiro ponto importante é a compreensão do sacerdócio universal, ou seja, a ideia de que não havia diferença entre clérigos e fiéis”, afirma Souza. “Esses são os três fundamentos, eu diria, do protestantismo de raiz. E estão presentes nas igrejas pentecostais históricas, embora não reconheçam a paternidade de Lutero”.
Esse reconhecimento, ressalta o historiador, é cada vez mais raro até mesmo nos meios evangélicos. “Lutero é quase totalmente desconhecido. Teólogos e intelectuais protestantes obviamente o conhecem. Mas para o povo ele é um completo estranho”, lamenta.
Assuntos atuais
Ao analisar a situação do Brasil e a trajetória de Lutero, o historiador Souza diz que não se identificaria ao observar a evolução desse legado. Isso porque, no seu entendimento, a maioria das denominações, especialmente as neopentecostais e que se baseiam na chamada teologia da prosperidade, embarcaram em um caminho que nada tem a ver com os princípios de Lutero.
“O meio evangélico brasileiro hoje está cheio de gurus, de pastores que basicamente determinam o que as pessoas devem fazer, pensar, inclusive em quem devem votar”, afirma. “Não há nada mais longe do pensamento de Lutero do que isso.”
“Se Lutero estivesse vivo hoje, ele se sentiria muito mais confortável – com exceção de algumas igrejas como a Anglicana e alguns ramos Metodistas – em uma missa [católica] do que em um culto evangélico”, diz ele. “Essa é a minha opinião. Pela distância desse evangelicalismo brasileiro em relação ao que ele entendia ser uma comunidade cristã.”
*Texto publicado originalmente em fevereiro de 2023 e atualizado em 31 de outubro de 2024
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