Congelar preços nos supermercados, sobretaxar produtos importados, conceder subsídios permanentes concebidos para serem temporários.
Todas as propostas testadas no passado na América Latina, com resultados considerados desastrosos pelos seus críticos — e lançadas pelas campanhas ou pelos democratas Kamala Harris ou o republicano Donald Trump em corrida para presidente dos Estados Unidos.
As ideias são algumas das que circularam neste ciclo eleitoral e chamaram a atenção por agradarem os eleitores e ao mesmo tempo causarem arrepios em muitos economistas.
O populismo infiltrou-se no debate económico nestas eleições americanas, afirmam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, como mais um sintoma da polarização que dividiu os EUA e produziu mudanças profundas no país mais rico do mundo.
Congelamento de preços e a memória dos ‘inspetores do Sarney’
“Há uma tendência de latino-americanização dos programas dos dois candidatos”, comenta o professor aposentado da PUC-RJ e economista-chefe da Genial Investimentos José Márcio Camargo.
Uma das propostas que chamam a atenção nesse sentido na campanha da vice-presidente Kamala Harris é o controle de preços para combater aumentos abusivos.
Em comício na Carolina do Norte, no dia 16 de agosto, ela disse que trabalharia para aprovar a primeira medida em nível federal para penalizar empresas que, por exemplo, se comportem de forma “oportunista” em tempos de crise, como desastres naturais, para aumentar preços e aumentar os lucros.
Popular entre os eleitores, a medida enfrenta resistência de muitos economistas.
“O controle de preços é algo que já foi testado inúmeras vezes em inúmeros lugares e nunca funcionou”, afirma Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e sócio da BRCG Consultoria.
“Na prática, você pode conseguir fazer isso por um curto período, mas, com o passar do tempo, os agentes econômicos e os mecanismos de demanda se reorganizam de uma forma que contorna os controles”, acrescenta.
Em diferentes experiências, os controlos de preços produziram distorções como a escassez de produtos e a emergência de mercados paralelos.
Isso aconteceu no Brasil em 1986, durante o governo de José Sarney, com o Plano Cruzado, que, entre outras medidas para tentar conter a hiperinflação, instituiu a precificação de preços nos supermercados.
Houve até incentivo para que o cidadão comum monitorasse os estabelecimentos para verificar se os preços estavam seguindo a tabela do governo —figuras que ficaram conhecidas como “fiscais do Sarney”.
O resultado foram prateleiras vazias, filas nos supermercados e racionamento de produtos.
Após 9 meses, os preços foram descongelados e o Cruzado ganhou um substituto, mas a inflação só foi realmente controlada com a chegada do Plano Real, lançado em 1994.
Os próprios americanos experimentaram controles de preços na década de 1970.
“Nixon já tentou fazer isso e não deu certo”, diz José Márcio Camargo, que fazia doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT) nesse período.
Chegou ao país em 1973, ano em que o republicano Richard Nixon, no início do segundo mandato, implementou uma segunda onda de congelamento de preços.
Um relatório da revista Time de Julho desse ano dá a escala dos impactos: os criadores de galinhas estavam a matar pintos afogados e os criadores de gado estavam a abater gado sob o argumento de que não conseguiam vender os seus produtos aos preços exigidos pelo governo sem perdas.
Tarifa de Trump
Outra medida fracassada do chamado “choque de Nixon” foi a instituição de uma tarifa de 10% sobre todos os produtos estrangeiros que entrassem nos EUA.
Trump propõe uma versão esteróide desta prática, com aumentos tarifários de 10% a 20% para todos os parceiros comerciais do país, 60% para produtos provenientes da China e sobretaxas superiores a 100% em circunstâncias específicas.
O republicano argumenta que a tarifa incentivaria as empresas a produzir mais nos Estados Unidos e a criar empregos no país. A maioria dos especialistas discorda.
“Ou vira inflação ou vira redução da demanda”, avalia o professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e economista-chefe do Banco Fator José Francisco de Lima Gonçalves, referindo-se aos possíveis efeitos.
Ele explica com um exemplo ilustrativo da China. Os americanos ou não fabricam ou têm capacidade reduzida para produzir o que importam do país asiático.
Se, de um momento para o outro, essas importações forem sobrecarregadas, os americanos ou concordarão em pagar mais para ter acesso ao produto de qualquer maneira (o que os economistas chamam de demanda inelástica), um processo que alimenta a inflação, ou deixarão de comprar porque acho que ficou muito caro, com impacto na redução do consumo.
A medida foi a única rejeitada por unanimidade por 39 economistas consultados pelo jornal norte-americano The Wall Street Journal, que enviou uma lista de propostas controversas que têm circulado em campanhas a especialistas e a um grupo de 750 eleitores de ambos os partidos.
100% dos economistas disseram que se opunham ao protecionismo tarifário. Entre os americanos comuns, metade disse que via a medida de forma favorável.
A proposta de controlo de preços de Kamala também reforça o fosso entre economistas e eleitores: apenas 13% dos especialistas disseram-se a favor, enquanto 72% dos cidadãos comuns responderam da mesma forma.
Subsídios, isenções e deportação em massa
Outra proposta de Trump que também divide economistas e leigos é tornar permanente uma série de cortes de impostos que instituiu em 2017, quando era presidente, e que deveriam ser temporários, com previsão de expirar em 2025.
Esse é um roteiro bem conhecido no Brasil: benefícios fiscais que começam com prazo de validade e acabam durando indefinidamente.
Um exemplo ilustrativo é a desoneração da folha de pagamento, instituída em 2011, no governo Dilma Rousseff, em caráter provisório, mas que acabou sendo ampliada e permanece em vigor mais de uma década depois.
“Eles (americanos) não estão muito acostumados com isso porque não é da natureza do seu debate político de curto prazo. Nós (Brasil) somos professores nesse tema, infelizmente”, diz Livio Ribeiro.
Além da perpetuação da Lei de Reduções de Impostos e Empregos, o pacote lançado por Trump em 2017 e que deveria terminar em 2025, o republicano tem uma série de outras propostas que prevêem subsídios e isenções, destaca o economista Steven Kamin, sênior pesquisador do centro de pesquisa do American Enterprise Institute.
Entre elas está isentar de impostos as gorjetas de quem trabalha no setor de serviços, ideia que acabou sendo abraçada também pela campanha de Kamala Harris.
Além do custo para as contas do governo, os economistas estimam que a medida poderia distorcer o mercado de trabalho, pois beneficiaria um pequeno número de trabalhadores de baixa renda.
Outra proposta que teve sucesso com parte do eleitorado e que Kamin acredita que poderá ter um grande impacto negativo na economia americana é a promessa de Trump de deportar milhões de imigrantes indocumentados.
A mão-de-obra imigrante, defende, é hoje a base de sectores como a construção e vários segmentos de serviços, especialmente aqueles que pagam salários mais baixos. A redução desta força de trabalho, além de criar um problema para estas indústrias no curto prazo, alimentaria mais inflação.
Por que agora?
Para José Márcio Camargo, o populismo que avança nos EUA e penetrou no debate eleitoral sobre a economia tem as suas raízes nas mudanças disruptivas que a globalização trouxe ao país.
A maior integração económica e tecnológica com o resto do mundo provocou uma profunda mudança na estrutura da economia americana, reduzindo o peso da indústria e fortalecendo o sector dos serviços, que hoje responde por 70% do Produto Interno Bruto (PIB) americano. o lado da oferta.
“A questão é que, nesta transição, diminui a procura de trabalho pouco qualificado”, acrescenta, referindo-se ao desemprego gerado pela transferência de parte da produção para outras regiões do planeta.
Este foi um processo, aliás, que não se restringiu aos EUA, mas que se repetiu em outros países ricos, gerando ressentimentos semelhantes entre determinados grupos de eleitores e discursos políticos que se enquadram na definição de populista, oferecendo soluções fáceis para questões complexas, que geralmente agradam às massas, mas não resolvem problemas.
“Acho que o populismo se tornou uma força cada vez mais importante na política americana”, diz Kamin.
“A América Latina tem mais história com movimentos populistas, está mais familiarizada com eles. Os EUA nem tanto… mas estamos chegando lá.”
Nova fase do liberalismo americano?
Na disputa mais acirrada pela Casa Branca da história recente dos EUA, as propostas populistas para a economia ganharam espaço no debate eleitoral enquanto a retórica do Estado mínimo, que nas últimas décadas esteve intimamente associada à imagem que o mundo tinha do liberalismo americano, estava em declínio. fundo.
A prova a este respeito, aponta Kamin, é o facto de tanto as agendas de Trump como de Kamala preverem um aumento dos gastos governamentais e uma expansão da dívida pública.
“A política fiscal de Trump levará a défices maiores, mas nenhum dos dois candidatos promete de forma alguma consolidação fiscal”, avalia o especialista, que teve uma longa carreira no Federal Reserve (FED), o banco central americano.
Isto representa uma ruptura com a mais recente tradição de debate económico no país e, para os economistas entrevistados pelo relatório, tem raízes em questões internas dos EUA, mas também ecoa novos fenómenos globais, como a tendência para aumentar o papel dos o Estado.
A retórica do “ultraliberalismo” – ligada à ideia de Estado mínimo, de que o mercado é capaz de se auto-regular – perdeu força na sequência das crises financeiras que eclodiram em 2008/2009 nos EUA e 2011/2012 na Europa , afirma Livio Ribeiro, do Ibre-FGV e BRCG Consultoria. Desde então, deu lugar à ideia de que poderia ser desejável um Estado mais forte, que ganhou ainda mais força com a pandemia de covid-19.
“Isso já foi visto no mundo todo, não é só no caso americano, né? Hoje temos um sistema fiscal mais frouxo no mundo, mais permissivo, com dívidas maiores, maior participação do Estado – e um sistema monetário que está aí tentando equilibrar (controlar o aumento da inflação)”, avalia.
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