Nomeado duas vezes Prêmio Nobelo cientista, sanitarista, infectologista, bacteriologista, professor e pesquisador Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (1878 -1934) entrou para a história com uma marca que até hoje não foi superada.
Ele foi a primeira e até agora a única pessoa a descrever completamente uma doença infecciosa.
Isso significa que, com suas pesquisas, ele detalhou o patógeno, o vetor, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia da tripanossomíase americana, conhecida como Doença de Chagas – em sua homenagem.
Nesse processo de pesquisa, ele descobriu o protozoário causador da patologia e o batizou Trypanosoma cruzi — numa alusão elogiosa ao amigo, também médico Oswaldo Cruz.
Chagas não ganhou o Prêmio Nobel, mas acabou sendo reconhecido com diversas outras homenagens nacionais e internacionais. Tornou-se membro honorário da Academia Nacional de Medicamento e recebeu doutorados honorários das universidades de Harvard e Paris.
“Carlos Chagas alcançou grande reconhecimento, no Brasil e no exterior, logo após a descoberta da doença que leva seu nome”, diz a socióloga e historiadora Simone Petraglia Kropf, autora do livro, à BBC News Brasil Carlos Chagas, um cientista do Brasil e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Ela lembra que a sua adesão à Academia Nacional de Medicina “chamou a atenção da imprensa, que comemorou a grande conquista do ciência nacional”.
“Em 1911, seus estudos sobre a doença ganharam destaque no pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene, em Dresden, na Alemanha”, acrescenta.
“Em 1912, recebeu o Prêmio Schaudinn de Protozoologia, concedido pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo”, diz o pesquisador.
“Ao longo de sua vida, tornou-se membro de prestigiosas instituições médicas e científicas de diversos países, especialmente na área da medicina tropical, e recebeu importantes prêmios e homenagens”.
Mas o facto de não ter recebido o Prémio Nobel, para o qual foi nomeado em 1913 e 1921, ainda é visto por muitos como uma injustiça histórica.
“Acho que foi uma fratura, um ferimento para a ciência brasileira. Porque ele teve chance de conseguir, mas uma série de conflitos talvez internos, ciúmes e algumas coisas nesse sentido fizeram com que o nome dele não fosse escolhido”, comenta ao a historiadora da BBC News Brasil Rita de Cássia Marques, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“E ele teve chance de vencer, porque é muito difícil fazer o que ele fez: identificar uma doença em todo o seu ciclo, desde o animal até todo o seu desenvolvimento. Isso é muito raro e uma coisa muito importante”, acrescenta Marques.
“Sua descoberta foi única […] e mereceria um Prêmio Nobel, obviamente”, diz a historiadora Ana Nemi, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), à BBC News Brasil.
Ela atribui o fato de ele nunca ter recebido o prêmio ao contexto hierárquico consolidado entre o norte global e o sul global.
“Na época eram termos diferentes, eram países modernos versus países atrasados. O fato é que existe essa hierarquia de produção de conhecimento e conhecimento e é muito difícil quebrar [esta barreira] sendo pesquisadores do sul global”, analisa.
Eu queria ser médico desde criança
Nasceu em Oliveira, município mineiro, em uma família de cafeicultores. Queria ser médico ainda criança, por influência de um tio. A mãe dele desaprovou a ideia – ela preferia um filho que fosse engenheiro.
Formou-se em 1902 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Quando pesquisava sua tese final, acabou indo para o Instituto Soroterápico Federal, conhecido como Manguinhos, dirigido por Oswaldo Cruz. Foi o primeiro contato e o início de uma amizade.
Chagas além de realizar sua graduação sobre o ciclo evolutivo da malária, também conseguiu lá seu primeiro emprego — atualmente no Instituto Oswaldo Cruz.
Após uma breve experiência como clínico no Hospital Jurujuba, em Niterói, Chagas acabou nomeado médico da diretoria-geral de Saúde Pública do Rio de Janeiro.
A partir de 1905, a carreira de Carlos Chagas passou a se concentrar no combate às doenças em campanhas de saneamento. Cruz o convidou para trabalhar no controle da malária no interior de São Paulo.
Seu trabalho deu certo e acabou servindo de protocolo para outras iniciativas pelo país. Ele próprio se dedicou a esse trabalho, posteriormente, no Rio e em Minas, além de São Paulo.
Ao trabalhar em Minas, em 1907, identificou um protozoário no sangue de um sagui, que batizou Trypanosoma minasensis.
Na mesma época, um engenheiro que trabalhava na construção de uma ferrovia na região da cidade de Lassance, próxima ao rio São Francisco, contou-lhe que ali havia uma infestação de um inseto hematófago chamado barbeiro.
Após análise, o médico concluiu que se tratava de outro protozoário, semelhante ao que atacou macacos. Ele nomeou o parasita Trypanosoma cruzi. A descoberta do brasileiro foi publicada em uma revista acadêmica alemã em 1909. A notícia repercutiu em todo o continente europeu.
Nos anos seguintes, Chagas continuou examinando pessoas atacadas pelo parasita, até compreender plenamente o complexo ciclo da doença e suas consequências para o ser humano.
Não chamei a doença pelo nome
A doença acabou sendo chamada de doença de Chagas, mas o próprio cientista recusou o rótulo. Ele continuou a chamá-la de tripanossomíase americana.
“Além do conhecimento sobre a doença que leva seu nome, Carlos Chagas também trouxe uma contribuição científica inovadora por meio de seus estudos sobre as características biológicas do Trypanosoma cruzi“, detalha Kropf.
“Eles elucidaram aspectos importantes da relação entre os parasitas e seus vetores, tema que mobilizou a comunidade científica internacional no campo da medicina tropical da época. Seus estudos sobre a transmissão e o controle da malária também foram uma contribuição científica a ser destacada. “
Na década seguinte, o cientista se dividiu entre conferências e eventos acadêmicos, divulgando sua descoberta e seu envolvimento em outras ações de saúde em todo o Brasil. Ele esteve na Amazônia, visitando comunidades ribeirinhas e buscando entender as epidemias que assolavam a região.
Três dias após a morte de Oswaldo Cruz, Chagas foi nomeado seu sucessor na direção do instituto que hoje leva seu nome. Em 1925, foi o responsável por receber o físico alemão Albert Einstein, que visitou o país.
Quando o Brasil foi acometido pela gripe espanhola, em 1918, a presidência da República o convidou para dirigir as ações de contenção da epidemia. Criou cinco hospitais de emergência e publicou cartazes de orientação para a população. Ele permaneceu envolvido com o caso até o fim da epidemia no Brasil.
Em 1919, foi nomeado pelo Presidente Epitácio Pessoa (1865-1942) diretor-geral da Saúde Pública, conciliando este cargo com o do instituto que já dirigia. Sua missão era organizar o público brasileiro. Centralizou os sistemas de saúde e concentrou esforços em campanhas para controlar e erradicar epidemias como a malária e a doença de Chagas.
Marques lembra que os médicos também tiveram papel importante na estruturação das carreiras de saúde no Brasil, com a institucionalização das escolas de enfermagem, por exemplo.
“Proporciona uma dinâmica melhor para preparar melhor os profissionais para intervir, intervir e trabalhar na saúde pública. O enfermeiro é muito importante. O educador em saúde é um novo personagem que incorpora novas tarefas e ganha diplomas por isso”, lembra.
Para o professor, esse movimento passou a criar uma lógica entre os profissionais de saúde “trabalhar mais na perspectiva de educação, prevenção e promoção da saúde”. “Este é um legado importante de Carlos Chagas”, enfatiza.
“Chagas deixou um legado importante como gestor da saúde pública federal, ao implementar serviços e políticas de saúde nos diversos estados do país, especialmente nas áreas rurais”, afirma Kropf.
Ele morreu com apenas 55 anos, vítima de um ataque cardíaco.
Legado
“Apesar do foco em sua pessoa, é importante destacar que o reconhecimento dado a Carlos Chagas foi resultado de um trabalho coletivo de pesquisa, que mobilizou outros pesquisadores do Instituto Manguinhos”, lembra Kropf.
“Além disso, foi um reconhecimento fundamental para mostrar que os cientistas brasileiros não estavam restritos a copiar conhecimentos produzidos no exterior, mas que tinham plena capacidade de produzir contribuições científicas originais, alinhadas com a agenda internacional”.
Para o sociólogo e historiador, o legado de Chagas não se restringe “ao conhecimento científico que produziu”, mas também “à sua visão mais ampla do compromisso social e político que a ciência brasileira deve assumir, na busca de soluções concretas para os problemas de saúde do população brasileira”.
“Ele sempre fez questão de afirmar que a doença que leva seu nome era um exemplo das precárias condições de saúde e de vida das populações pobres do interior do Brasil e que, portanto, ela e outras endemias rurais deveriam ser consideradas prioridades no plano político. agenda da saúde pública”, ressalta.
“A ciência produzida na Fiocruz desde a sua criação está alinhada a essa visão e legado, que hoje se expressam no compromisso da instituição com os valores e princípios do SUS [o Sistema Único de Saúde, do governo federal].”
Nemi destaca ainda como importante legado de Chagas “os passos que foram dados, a partir de suas pesquisas”, no sentido de compreender e estabelecer métodos de controle e erradicação de doenças tropicais. Ela o vê como alguém que abriu caminho para “a possibilidade de discutir as determinações sociais das doenças”.
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