Uma família com cinco filhos e um cachorro. Uma casa igualmente grande e barulhenta de frente para o mar. Um vai e vem com amigos, que se espalham por uma espaçosa mesa de jantar. Há muita música, dança e risadas.
O diretor Walter Salles constrói o castelo perfeito para depois derrubá-lo Eu ainda estou aquifilme que estreou quinta-feira (11/07) em todo o Brasil e representará o país na disputa por indicações para Óscar.
Baseado em uma tragédia real — o desaparecimento do deputado Rubens Paiva devido a ditadura militarem 1971 – o filme também fala sobre a impermanência da vida.
“E a vida é incrível, porque às vezes esses momentos de dificuldade terrível acabam formando o seu caráter. E acho que foi isso que aconteceu com Eunice”, diz a atriz Fernanda Torres à BBC News Brasil em entrevista por telefone, de Los Angeles.
No filme, Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, que vê sua vida virar de cabeça para baixo após o desaparecimento do marido.
O filme conta ainda com uma pequena participação de sua mãe, a atriz Fernanda Montenegro. Mas Fernanda Torres diz que, em princípio, essa participação foi muito maior.
A mãe deveria interpretar Eunice nos últimos anos de vida, quando foi acometida pelas dificuldades decorrentes do Alzheimer.
“Mas a mãe disse que não faria, porque foi um erro tirar uma atriz e colocar outra”, diz Fernanda Torres. “É por isso que fiquei meio assustado. Mas acho que consegui.”
Mas no final, as cenas que mostravam a vida de Eunice com a doença acabaram cortadas.
“Houve uma cena muito poderosa que está com [atriz] Marjorie Estiano [que interpreta uma das filhas do casal, Eliana] levando Eunice em cadeira de rodas para o Doi-CODI.”
Além de cuidar sozinha dos filhos e lutar para que a morte do marido fosse reconhecida, Eunice Paiva foi estudar Direito e se tornou a maior especialista em direito indígena do país naquela época.
O livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que dá origem ao filme, descreve o drama daquela mulher independente que acaba acometida pela doença.
“O maior medo de Eunice era ficar dependente. Por isso chega uma hora que ela pede para ser banida”, diz Fernanda.
“Isso é algo que toda família acaba enfrentando, se você tiver a sorte de viver muito. E você só aprende vivendo, não dá para prever, não é da noite para o dia.
Com os cortes, Fernanda Montenegro acaba aparecendo como Eunice, na cena final. Portanto, o filme é também o reencontro entre Walter Salles e a atriz, quase 30 anos depois das filmagens Brasil Central.
Aclamado pela crítica, o filme levou o Brasil ao tapete vermelho do Oscar, consagrando Fernanda Montenegro como a primeira mulher latino-americana concorrendo a uma estatueta de melhor atriz.
Mas ela acabou perdendo para Gwyneth Paltrow, Shakespeare Apaixonado.
Agora, Eu ainda estou aqui poderá levar mais uma vez o Brasil a disputar uma estatueta inédita.
Premiado pelo roteiro no Festival de Veneza, o filme foi escolhido para representar o Brasil nas indicações ao Oscar, que será anunciado no dia 17 de janeiro de 2025.
As expectativas para a cerimônia, que acontece no dia 2 de março, são altas. Mas para Fernanda o mais importante é fazer com que os brasileiros voltem às salas de cinema. “Eu adoraria que fosse um filme que trouxesse o público de volta ao cinema no Brasil”, diz ele.
“Durante a pandemia todo mundo comprou uma TV enorme, então para algo te tirar de casa e te fazer ir ao cinema tem que ser algo que desperte curiosidade, uma certa urgência de ver.”
Segundo ela, Eu ainda estou aqui é um filme “sobre o Brasil e para o Brasil”. “Você pode ficar na esquerda, na direita, no centro, não importa, tenho certeza que vai te tocar em um lugar diferente, já vi isso em todos os países em que o filme passou.”
Em campanha para festivais e para que o filme concorra ao Oscar, Fernanda passará o resto de novembro em Los Angeles.
“Nos últimos cinco meses devo ter passado cinco dias no Brasil”, diz.
“Estou feliz que meus filhos estejam velhos agora, porque senão não sei como seria.”
Assim como Eunice Paiva, que teve cinco filhos, a maternidade está muito presente na vida de Fernanda.
Ela teve dois filhos com o diretor Andrucha Waddington, que já tinha outros dois meninos quando se conheceram.
“Eu também tenho esse lado materno da Eunice”, diz ele.
“E a Eunice me lembra muito a minha mãe, tendo essa inteligência de mulher dos anos 70, que, de certa forma, acho que herdei também.”
No filme, Eunice acaba criando sozinha os cinco filhos, que ainda eram crianças quando o pai foi levado embora.
Em uma cena, ela é forçada a dizer que “mamãe não está triste” e enxugar as lágrimas quando uma de suas filhas lhe pergunta por que ela está triste.
“A mãe, de certa forma, tem mesmo que aguentar”, diz ele, e depois pensa.
“Às vezes você sonha com seu filho te pegando no colo, mas quando você tenta não dá muito certo (risos). Toda mãe já teve isso: você tenta chorar para que seu filho sinta pena de você, mas geralmente eles não o fazem, e acho que esse é o papel da mãe, estar presente para aguentar.”
Esse muro em que Eunice se transforma fica marcado o tempo todo no filme.
Em uma das cenas, ela manda os filhos sorrirem em um retrato para a revista Títuloenquanto o marido está desaparecido, após o repórter pedir um olhar “triste”.
“Não adianta sentar na calçada e chorar, porque os deuses não vão ter pena de você”, resume Fernanda, sobre a energia vital de Eunice Paiva.
Caso de Rubens Paiva está parado no Supremo
A morte de Rubens Paiva foi reconhecida apenas 40 anos depois de ter sido assassinado pelos militares.
Porém, até hoje os responsáveis pelo crime não foram responsabilizados.
Foi por meio de trabalho investigativo realizado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), que identificou os suspeitos de terem participado do assassinato do deputado.
Com base na reportagem da CNV, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou, em 2014, cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar pelo assassinato e ocultação do cadáver do deputado: José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza , Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.
As acusações incluíam homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual.
A Justiça Federal do Rio de Janeiro acolheu a denúncia, que posteriormente foi confirmada pelo Tribunal Regional da 2ª Região.
Mas a defesa dos réus pediu habeas corpus, o que foi negado pelo Tribunal Regional Federal. O caso chegou então ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, por meio do ministro Teori Zavascki, concedeu liminar em 2014, paralisando o processo.
O ministro Alexandre de Moraes herdou os processos pendentes de Zavascki após sua morte em 2017, em consequência de um acidente de avião. Depois de seis anos sem qualquer ação, no mês passado Moraes pediu à Procuradoria-Geral da República que comentasse o caso.
Dos cinco militares acusados do crime, três já morreram.
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