Meses depois de o marechal Deodoro da Fonseca enganar a própria esposa, burlar as recomendações médicas e sair da cama – onde havia passado a madrugada daquele febril 15 de novembro – para proclamar a República brasileira, o país já conhecia as primeiras críticas articuladas sobre o processo que removeu a monarquia do poder em 1889.
Escrito pelo advogado paulista Eduardo Prado, o livro Após a Ditadura Militar no Brasil, de 1890, argumentou que a Proclamação da República no Brasil havia sido uma cópia do modelo dos Estados Unidos aplicado a um contexto social e a um povo com características distintas.
A monarquia, segundo ele, ainda era o modelo mais adequado para a sociedade do país. Prado também foi o primeiro autor a considerar a Proclamação da República um “golpe de estado ilegítimo” realizado pelos militares.
Hoje, quase um século e meio depois, o tema ainda suscita debates: enquanto vários historiadores apontam a importância da chegada da República ao Brasil, apesar de suas inconsistências e dificuldades, um movimento que ganhou força nos últimos anos — especialmente no mídia social – ainda contesta.
“A proclamação foi um golpe de uma minoria escravista aliada a grandes latifundiários, militares, segmentos da Igreja e da Maçonaria. O que se sabe é que foi um golpe ilegítimo”, disse o empresário Luiz Philippe de Orleans à BBC News Brasil e Bragança. tataraneto de D. Pedro II, último imperador brasileiro, e integrante do movimento de direita Acorda Brasil.
Em 2018, obteve 118.457 votos no Estado de São Paulo e foi eleito deputado federal pelo PSL, então partido de Jair Bolsonaro, também eleito presidente naquele ano.
“Quando há ilegitimidade na proclamação de qualquer modelo de governo, a autoridade não pode ser estabelecida e, portanto, não há ordem. Foi exatamente isso que aconteceu na República: destituíram o monarca e, no momento seguinte, foi o caos “, acrescenta Orleans e Bragança, justificando pela história os recentes solavancos da democracia brasileira.
O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, deu novo fôlego ao movimento pró-monarquia, impulsionado pelas redes sociais e pela presença de grupos monárquicos em manifestações contra o governo petista, entre 2015 e 2016 — muitos deles, empunhando bandeiras do Império Brasileiro.
Um movimento de elites
A ideia de que a Proclamação da República foi um “golpe” é reforçada pelo historiador José Murilo de Carvalho, que escreveu um livro sobre os períodos monárquico e republicano no Brasil: O Pecado Original da República (editora Bazar do Tempo).
Um dos intelectuais mais respeitados do país, Murilo também admite que é possível discutir a legitimidade do processo, como afirmam os atuais monarquistas.
“Para sustentar (a pretensão de legitimidade da proclamação), seria necessário assumir que a minoria republicana, composta predominantemente por bacharéis, jornalistas, advogados, médicos, engenheiros, estudantes de escolas superiores, além de cafeicultores de São Paulo, representava os interesses da maioria esmagadora da população ou de todo o país”, avalia.
Ainda segundo Murilo, não só foi um golpe, como não contou com a participação popular, o que fortalece o argumento de ilegitimidade apresentado pelos atuais monarquistas. Para ele, o distanciamento da maior parcela da população das decisões políticas é um problema que perdura até hoje.
“Embora os propagandistas falassem em democracia, o pecado foi a ausência do povo, não só na proclamação, mas pelo menos até ao final da Primeira República. A incorporação plena do povo no sistema político ainda é um problema para a nossa República hoje. é possível dizer que as condições do país não permitiam outra solução e que os propagandistas eram sonhadores. Muitos eram mesmo”, afirma.
Monarquia como opção de regime político?
Especialista no período, o jornalista e historiador Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822 e 1889concorda com a leitura do “golpe”. Para ele, porém, o debate sobre a legitimidade da República é sobre “quem legitima o quê”, o que está ligado ao processo de consolidação de qualquer regime político.
“O termo ‘legitimidade’ é muito relativo. Depende do que é considerado o instrumento legitimador da nossa República. Se for o voto, não é legítimo, porque o Partido Republicano nunca teve apoio nas urnas. Agora, se considerarmos esse instrumento a força das armas, foi um movimento legítimo, porque foi através delas que o Exército consolidou o regime”, afirma.
Para Laurentino, a questão envolve a luta pelo direito de nomear os acontecimentos históricos que, no caso dos republicanos, conseguiram promover a ideia de uma “proclamação” e não de um “golpe”.
“O que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma coisa: o exército nas ruas fazendo política. quanto às mudanças promovidas por Getúlio Vargas A proclamação é contada hoje por quem venceu”, argumenta.
Para o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), é sim possível falar em golpe na fundação da República. Questionar já a sua legitimidade, como fazem Orleães e Bragança, seria um revisionismo histórico inaceitável.
“Se pensarmos que a monarquia foi um regime historicamente ligado à escravatura (que é de facto uma instituição ilegítima, em qualquer aspecto), pessoalmente penso que a fundação da República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não foi acompanhado de medidas democratizantes. e reformas inclusivas”, explica.
Segundo José Murilo de Carvalho, é possível dizer que a proclamação foi quase inteiramente obra dos militares, como diz o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1889.
“Poucos dias antes do golpe é que os líderes civis se envolveram”, explica Murilo. Para o professor Marcos Napolitano, porém, o fato de ter sido uma minoria a responsável pela derrubada da monarquia não priva o movimento de sua legitimidade.
“Qualquer processo político está ligado à capacidade das minorias activas obterem o apoio das maiorias, activas ou passivas, e neutralizarem outros grupos que estão contra elas. Um processo político que começa com uma minoria activa nem sempre resulta numa falta de democracia . Esta é a medida de legitimidade de um processo político. Muitos processos políticos democratizantes, que mudaram a história mundial, começaram desta forma, o que não os isenta de serem processos muitas vezes traumáticos e conflituosos”, explica Napolitano.
Orleans e Bragança expressa uma alternativa que existe há algum tempo entre um grupo restrito de historiadores. O mais militante deles é o professor Armando Alexandre dos Santos, da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).
Frequentemente convidado pela Casa Real para palestras e eventos, é amigo pessoal de D. Luiz Gastão de Orleans e Bragança – que seria o imperador do país se este fosse uma monarquia – desde a década de 1980.
Para Santos, a República representou o estabelecimento de uma ditadura nunca antes vista no Brasil.
“Era um quartel de uma minoria rebelde de militares que não tinha apoio popular. A proclamação em si foi uma demonstração de indecisão: Deodoro da Fonseca, por exemplo, só decidiu proclamá-la porque foi pressionado pelos integrantes do seu grupinho que precisavam de uma patente militar para representá-los. Foi, acima de tudo, uma moda passageira, uma imitação servil dos EUA”, argumenta.
Santos, porém, não encontra respaldo para sua tese na maior parte do meio acadêmico. Para historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, o retorno à monarquia definitivamente não está no horizonte político do país.
“O plebiscito de 1993 (para determinar a forma de governo do país) mostrou que existe uma maioria sólida a favor da República, apesar dos erros do regime. Fora do Carnaval, a imagem predominante da monarquia ainda é a de um regime retrógrado”, diz José Murilo de Carvalho, seguido de Gomes.
“Num momento de discussão sobre a identidade nacional, sejamos violentos ou pacíficos, corruptos ou transparentes, procuramos mitos fundadores. Um deles é D. Pedro, que era um homem culto e respeitado. É a busca por um pai que resolva tudo sem que a gente se preocupe”, finaliza.
*Este relatório foi publicado originalmente em 15 de novembro de 2017.
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