Trancados em uma enorme sala de reuniões de um hotel à beira da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, diplomatas dos países que formam o G20 Aos poucos eles começaram a perceber o que, de alguma forma, era temido há alguns dias.
Durante as reuniões para negociação do texto do comunicado final, a chancelaria do Argentina indicou que não apoiava a menção de tributação dos super-ricosuma das principais bandeiras da presidência brasileira do G20.
O G20 é o grupo das 19 maiores economias do mundo, além de União Europeia e União Africana. Este ano, o grupo é presidido pelo Brasil e a cúpula acontecerá no Rio de Janeiro na segunda (18/11) e na terça (19/11).
Na diplomacia, as divergências durante as negociações que envolvem tantos países são vistas como normais.
Não é de surpreender que os “sherpas”, termo usado para designar os negociadores de cada país, estejam reunidos há nada menos que cinco dias num hotel do Rio de Janeiro, para tentar finalizar uma versão preliminar do comunicado final do G20.
Mas a oposição da Argentina à tributação dos super-ricos foi apenas o episódio mais recente de uma série de desentendimentos entre o país vizinho em relação a questões consideradas importantes pela diplomacia brasileira.
A postura da Argentina tem sido cada vez mais interpretada por diplomatas brasileiros e especialistas consultados pelo BBC News Brasil como aprofundamento de uma política externa mais radical que poderia se tornar uma espécie de “pedra na lateral” do Brasil não apenas no G20, mas além dele.
Desentendimentos em série
Antes de a Argentina anunciar sua oposição à tributação dos super-ricos, o governo argentino já havia feito outras manifestações que inspiraram desconfiança entre os diplomatas brasileiros.
A primeira teria sido enviar diplomatas com pouca experiência ou ascendência no governo Milei pelas negociações ocorridas durante a presidência brasileira do G20. Embora a cimeira dos líderes só se realize na próxima semana, o grupo teve dezenas de reuniões ao longo do ano.
O envio de delegações inexperientes foi interpretado como uma demonstração da falta de respeito dos argentinos pelo G20.
A segunda aconteceu em Outubro, quando o país foi o único a não assinar uma declaração ministerial a favor da igualdade de género e do empoderamento das mulheres.
A medida chamou a atenção de diplomatas porque os termos utilizados no texto foram aceitos até mesmo por países que, tradicionalmente, se oporiam ao tema, como Arábia Saudita e China.
A decisão argentina chegou a ser criticada pela primeira-dama do Brasil, Rosângela da Silva, durante evento esta semana no Rio de Janeiro.
“As vozes das mulheres precisam ser ouvidas, e o GT [Grupo de Trabalho] do Empoderamento saiu com uma resolução muito forte, muito poderosa. Infelizmente, tivemos um país, que foi a Argentina, que, por motivos, enfim… não assinou a resolução porque afirmava, no início da resolução, a igualdade de género”, afirmou.
A terceira aconteceu na semana passada, quando o governo argentino anunciou que o país se retiraria das negociações em curso na Convenção da Organização das Nações Unidas para o Clima no Azerbaijão, o COP29.
O movimento, que não teve precedentes na história recente da diplomacia argentina, apontou para o maior isolamento do país numa área vista como prioritária para a política externa brasileira: as mudanças climáticas.
Em comum, tanto as alterações climáticas como a agenda de empoderamento feminino são vistas pelos líderes de direita como agendas de uma suposta esquerda global à qual políticos como Milei e o ex-presidente Bolsonaro são contra.
A oposição do governo Milei à tributação dos super-ricos durante as negociações “sherpa” no Rio de Janeiro chamou ainda mais atenção porque os ministros da Fazenda dos países do grupo já haviam aprovado, em julho deste ano, uma declaração mencionando a tributação dos os chamados “ultra-ricos”.
Tudo isso se soma ao fato de que, segundo fonte do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Milei não solicitou visita bilateral com Lula por ocasião de sua chegada ao Brasil para o G20. Será a segunda vez que o argentino vem ao Brasil e não se reunirá bilateralmente com o petista.
Efeito Trump?
Mas o que estava por trás da postura do governo Milei?
Um diplomata brasileiro entrevistado em caráter reservado disse à BBC News Brasil que o comportamento do governo argentino não surpreendeu o governo brasileiro e que é visto como uma espécie de “modus operandi” de Milei para tentar chamar a atenção durante o evento.
Ele disse, no entanto, que ainda seria muito cedo para decretar um bloqueio completo à Argentina nas duas questões (empoderamento feminino e tributação dos super-ricos), uma vez que o texto final da cúpula só será divulgado na próxima semana, após a primeiras reuniões entre chefes de estado.
Isto significa que ainda há espaço para novas negociações e mudanças e posicionamentos entre os países.
Na opinião de Leandro Morgenfeld, historiador e professor da Universidade de Buenos Aires, o possível boicote ao documento de consenso no G20 está relacionado à postura de Milei de atacar as instituições multilaterais.
“Ele se alinha exageradamente com o [futuro] Administração Trumpque tem a mesma posição de boicotar qualquer espaço multilateral. Em primeiro lugar, isto está em linha com as recentes votações do governo Milei na ONU, rompendo com a tradição argentina.”
Para o pesquisador e professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo, Matheus Pereira, o comportamento do governo argentino tem duas intenções.
A primeira, segundo ele, é “enquadrar” o corpo diplomático do país para pressioná-lo a adotar, sem contestação, a nova orientação da política externa do país.
No final de outubro, Milei mudou o comando do Ministério das Relações Exteriores e Culto do país, responsável pelas relações internacionais do país. Diana Mondino, vista como um nome moderado no governo, saiu e entrou o empresário Gerardo Werthein, que atuou como embaixador do país no Estados Unidos.
A medida foi tomada depois que o país votou a favor de uma resolução que defendia o fim do embargo econômico imposto a Cuba.
Milei, que se autodenomina um anarcocapitalistafaz fortes críticas a regimes de esquerda como o cubano. Em entrevista no início de novembro, Milei disse que seu governo está investigando o caso e que pretende demitir os diplomatas envolvidos no episódio.
O professor conta ainda que o outro objetivo de Milei é aumentar a visibilidade sobre si mesmo.
“Isso faz parte de uma dupla estratégia: enquadrar a burocracia diplomática argentina, que o presidente e seus colaboradores consideram resistente à linha adotada pelo governo, e ganhar capital político”, afirma Pereira.
“Milei tem se esforçado para se afirmar como líder internacional da extrema direita, e adotar essas posições de grande repercussão, mas com custos políticos relativamente baixos, acaba sendo vantajoso”, acrescenta.
Para o professor, o recente eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos também pode ter influenciado o comportamento do governo argentino.
Isto porque tanto Trump como Milei se apresentam como líderes da direita internacional e que lutariam contra uma suposta aliança da esquerda global.
Morgenfeld, da Universidade de Buenos Aires, concorda que Milei tenta projetar-se como um líder global “contra agendas progressistas, que ele rotula como ‘comunismo internacional'”.
“Ao mesmo tempo, parece estar a alinhar a sua política externa com o possível futuro governo de Donald Trump, antecipando e reforçando iniciativas de extrema-direita que visam enfraquecer as instituições multilaterais”, acrescenta Morgenfeld.
O professor argentino avalia que, após a vitória de Trump, Milei se sentiu fortalecida e adotou posturas ultraconservadoras, isolando a Argentina no cenário internacional.
Milei diz agora que quer formar uma coligação de países de extrema-direita e ao mesmo tempo desfazer o consenso diplomático histórico do país, incluindo a defesa dos direitos humanos e da autodeterminação.
Morgenfeld destaca ainda que sua estratégia passa por impulsionar a integração regional, atacando líderes como Lula e Gustavo Petro, presidente da Colômbia, além de propor acordos bilaterais com os Estados Unidos que poderiam quebrar o Mercosul.
“Se Milei conseguir consolidar estas políticas, será uma tragédia não só para a Argentina, mas para toda a América Latina. Portanto, as organizações sociais e políticas que resistem aos ataques de seu governo têm claro que é essencial impedir o avanço desta processo de destruição.”
O professor Matheus Pereira, da FAAP, também destaca que a postura de Milei “cria um problema ou uma distração em um dos últimos compromissos internacionais importantes da Biden“.
Nesta semana, Milei se encontrou pessoalmente com Donald Trump nos Estados Unidos, durante evento na quinta-feira (14/11). O argentino foi o primeiro líder internacional a se encontrar com o presidente eleito dos Estados Unidos após a eleição.
Consequências limitadas
Dois diplomatas brasileiros entrevistados pela BBC News Brasil avaliam que o impacto que a postura da Argentina pode ter no G20 é limitado.
Um deles apontou o fato de que a Argentina não teria o mesmo peso político de gigantes como Estados Unidos, China e União Europeia, que também participarão da cúpula.
Nos bastidores, a diplomacia brasileira busca soluções para driblar um possível veto da Argentina a menções como igualdade de gênero e tributação dos super-ricos no texto da declaração final que está sendo negociada pelos países.
Uma alternativa é incluir uma espécie de “nota” apontando o desacordo explícito da Argentina com as questões às quais se opõe.
A posição é semelhante à do professor Matheus Pereira.
“Acho que a postura do país cria um transtorno, mas isso não vai parar o trabalho. Em última análise, quem vai arcar com o peso do isolamento serão os argentinos”, afirma.
Relações tensas
O clima das relações entre os atuais governos da Argentina e do Brasil não é considerado amigável.
Nas eleições de 2023 na Argentina, Lula indicou apoio à candidatura do então ministro da Fazenda, Sergio Massa, aliado do ex-presidente Alberto Fernández.
Ainda durante a campanha, Milei abordou o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) e lançou ataques contra Lula, chamando-o de “comunista” e fazendo alusões ao fato de o petista ter sido preso pelo Operação Lava Jato.
Logo após a vitória, os dois governos tentaram manter relações protocolares, mas a evidente desconexão entre Lula, de centro-esquerda, e Milei, de direita, criou um cenário de relacionamento considerado pelos diplomatas como “frio”.
Em junho deste ano, durante entrevista, Lula disse que o argentino deve um “pedido de desculpas” ao Brasil e que falaria “muita besteira”.
Em julho, Milei veio ao Brasil, mas não se encontrou com Lula. Participou de evento político de direita ao lado de Jair Bolsonaro, em Balneário Camboriú (SC).
Pouco depois, o Brasil atendeu a um pedido da Argentina para assumir a gestão de sua embaixada em Caracas, após o governo da Argentina Venezuela expulsou diplomatas argentinos do país.
Apesar disso, as relações entre os dois países parecem distantes do período em que ambos alcançaram avanços que levaram à criação do Mercosul, no início da década de 1990, ou mesmo da parceria política que existiu entre Lula e Fernández e entre o petista e o antigo Presidente Nestor Kirchner.
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