O Brasil conseguiu incluir uma menção inédita à importância de tributar os super-ricos no comunicado final do Cimeira de Líderes do G20apesar da dura resistência argentina.
O país vizinho, liderado pelo presidente Javier Mileiacabou cedendo, diante do consenso do restante do grupo — formado por 19 países mais a União Europeia e a União Africana.
A Casa Rosada preferiu divulgar o seu próprio comunicado, dizendo que assinaria o documento final, ainda que discordasse de vários pontos.
Apesar de incluir a tributação dos super-ricos, a declaração final do G20 não aborda a proposta brasileira de um imposto mínimo global sobre os bilionários, algo que gerou resistência de diversos países, especialmente dos Estados Unidos.
Portanto, o texto final enfatiza o respeito à soberania de cada país nesta questão.
“Com total respeito pela soberania fiscal, procuraremos envolver-nos de forma cooperativa para garantir que os indivíduos com património líquido ultraelevado sejam efetivamente tributados”, diz o texto final.
“A cooperação poderia envolver o intercâmbio de melhores práticas, o incentivo a debates em torno dos princípios fiscais e o desenvolvimento de mecanismos anti-evasão, incluindo a abordagem de práticas fiscais potencialmente prejudiciais”, continua o documento.
O comunicado foi divulgado nesta segunda-feira (18/11), primeiro dia da Cúpula dos Líderes do G20, após oito dias de negociações entre diplomatas reunidos no Rio de Janeiro.
A Cúpula termina nesta terça-feira (19), quando o Brasil entregará simbolicamente a presidência do grupo à África do Sul, liderança que começa efetivamente em dezembro.
Ao longo deste ano, período em que o Brasil presidiu o G20 e soube ditar as prioridades do grupo, o governo do Luiz Inácio Lula da Silva adotou a proposta do economista francês Gabriel Zucman de um imposto mínimo global de 2% sobre as fortunas dos bilionáriosque poderia arrecadar US$ 250 bilhões (R$ 1,24 trilhão) por ano, tributando cerca de 3 mil pessoas em todo o mundo.
O presidente argumentou que os recursos arrecadados foram utilizados no combate à fome e à pobreza e em ações ambientais.
“Nunca antes o mundo teve tantos bilionários. Estamos falando de 3 mil pessoas que detêm quase US$ 15 trilhões em ativos. Isto representa a soma da riqueza do Japão, Alemanha, Índia e Reino Unido. É mais do que se estima ser necessário para os países em desenvolvimento lidarem com as mudanças climáticas”, argumentou Lula em junho.
A ideia de uma taxa mínima global teve apoio entusiástico do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Segundo ele, a medida evitaria a fuga de capitais de um país com impostos mais elevados para outros com isenção ou impostos mais baixos.
Em julho, o Brasil conseguiu liderar uma declaração de consenso dos ministros das Finanças do G20 sobre tributação, na qual o grupo reconheceu a importância de tributar os super-ricos, sem citar a proposta de um imposto único.
Na altura, a oposição mais aberta a um imposto global veio dos Estados Unidos. O governo Joe Biden apoiou o aumento da progressividade fiscal e a tributação dos super-ricos, mas foi contra a ideia de uma tributação única.
“A política fiscal é muito difícil de coordenar globalmente. Não vemos necessidade nem achamos realmente desejável tentar negociar um acordo global sobre esta questão. Achamos que todos os países devem garantir que os seus sistemas fiscais são justos e progressivos”, disse a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, na reunião dos ministros das finanças do grupo, em Julho.
Mesmo assim, a declaração consensual foi considerada uma vitória no Ministério da Fazenda, e a expectativa inicial do governo Lula era conseguir manifestação semelhante no comunicado final.
Isso quase não aconteceu com o endurecimento da posição da Argentina na reta final das negociações.
Para os diplomatas brasileiros, essa postura foi impactada pela eleição do Donald Trump como futuro presidente americano – ele próprio um bilionário que, no seu primeiro governo, adoptou reduções de impostos que beneficiaram grupos de rendimentos mais elevados.
Milei viajou aos Estados Unidos na quinta-feira (14/11) para se encontrar com Trump antes de vir ao Rio de Janeiro para o G20.
O argentino é abertamente contra o aumento de impostos sobre os mais ricos e até criticou diretamente, em setembro, um discurso do presidente de Espanha, Pedro Sanchez (Partido Socialista Operário Espanhol, de esquerda), cujo governo aumentou os impostos sobre os grupos de rendimentos mais elevados.
“O socialismo é uma doença aberrante da alma. A combinação de inveja profunda, arrogância fatal e ignorância da economia nesta frase é horrível. D..S proteja os espanhóis deste predador de riqueza… VLLC [Viva la Liberdade Carajo]!!!, escreveu ele, em uma postagem na rede socialenquanto compartilha um vídeo de Sanchez.
Autoridades brasileiras ouvidas pela BBC News Brasil reconhecem que há mais países resistentes a um imposto global, mas evitaram detalhar quais.
Segundo diplomatas familiarizados com as negociações, entre os motivos dessa resistência estariam a dificuldade em identificar os domicílios fiscais de alguns de seus bilionários e a incerteza sobre o destino que seria dado aos recursos arrecadados, caso algum tipo de fundo global resultante desta tributação foram estabelecidos. .
O relatório concluiu também que nem todos os países aderiram com entusiasmo à declaração ministerial de Julho. No Ministério da Fazenda, há entendimento de que membros do Brics (parceria entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) concordaram com o documento no apoio político ao Brasil.
Brasil quer que o tema avance na ONU ou na OCDE
O desejo do Brasil é usar a menção à tributação dos super-ricos na declaração dos líderes do G20 para promover o tema na ONU ou na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organização que reúne principalmente países desenvolvidos.
O governo entende que o grupo é importante para impulsionar politicamente as agendas, mas que as discussões técnicas e a construção de um acordo concreto devem ocorrer em outros fóruns.
A OCDE liderou as negociações para a adoção de um imposto global mínimo de 15% sobre as multinacionais, um processo que demorou mais de duas décadas desde as negociações iniciais até à elaboração efetiva de uma proposta, que ainda está a ser implementada pelos países.
A ONU está num longo processo de elaboração de uma Convenção Fiscal, com o objectivo de tornar o sistema fiscal internacional mais inclusivo, justo e eficaz.
Dentro desse processo, os países poderão escolher dois temas que serão abordados primeiro, a partir de fevereiro de 2025. A diplomacia brasileira busca apoio para um deles ser a tributação dos super-ricos.
“Serão escolhidos dois temas para serem discutidos e serão objeto de protocolos, antes mesmo da convenção. E defendemos que um desses temas seja a tributação dos super-ricos. “, disse a diplomata e secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Tatiana Rosito, que comandou a “Trilha Financeira” do G20 durante a presidência brasileira, à BBC News Brasil no início de novembro.
“O objetivo principal era colocar o tema na ordem do dia. Virou tema de discussão dos principais líderes mundiais. Não houve o menor sinal, antes da presidência brasileira, de que isso iria acontecer. Agora, o G20, como sabemos, ele não implementa nada. O G20 chega a consensos, impulsos políticos”, acrescentou.
O economista Quentin Parrinello, diretor do Observatório Fiscal Europeu e integrante da equipe de Gabriel Zucman, também comemora a visibilidade do tema.
“Já temos o G20 há várias décadas e é a primeira vez na história do grupo que conversamos sobre a tributação dos super-ricos. Isso é enorme”, diz ele.
“E o facto de não haver imposto mínimo no final deste G20 não é uma desilusão. Ninguém esperava um imposto mínimo no final deste ano. Estávamos à espera do lançamento de uma agenda global”, disse, em conversa com o repórter antes da Cúpula.
Parrinello enfatiza que os acordos fiscais globais são complexos e levam tempo. Ele reconhece que a eleição de Trump torna o cenário menos favorável, mas espera que a questão possa avançar a nível técnico.
Segundo o economista, foi o que aconteceu com a criação de uma taxa mínima global para as multinacionais. Os países do G20 já tinham concordado com a adoção da taxa quando Trump tomou posse pela primeira vez, em 2017, e a medida continuou a ser desenvolvida a nível técnico na OCDE.
Depois, quando chegou o momento da aprovação, os Estados Unidos já eram presididos por Biden.
“Então, se durante os quatro anos de presidência de Trump houver uma conversa sobre os aspectos técnicos, os EUA podem bloquear. Mas, como não há votação, é só a conversa técnica, realmente não acontece nada”, analisa .
“A questão é se teremos uma administração dos EUA totalmente contrária durante os próximos 20 anos. Sim, isso será um problema”, reconhece.
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