A nova doutrina nuclear, que o presidente russo, Vladímir Putinaprovada nesta terça-feira (19/11), contém diversas cláusulas e conceitos que não estavam presentes na versão anterior. Adicionalmente, algumas redações foram alteradas, resultando na alteração do significado dos artigos em que aparecem.
O nome oficial da doutrina é Fundamentos da Política de Estado da Federação Russa no Campo da Dissuasão Nuclear. A versão anterior havia sido aprovada em 2020, antes da Rússia invadir o Ucrânia.
O novo documento consiste em quatro capítulos:
– “Disposições Gerais”, que descreve os conceitos básicos, metas e objetivos da dissuasão;
– “A Essência da Dissuasão Nuclear”, que explica o que motiva a Rússia a utilizar forças estratégicas para dissuadir;
– “Condições de transição para a utilização de armas nucleares“;
– “Tarefas e funções dos órgãos do governo federal”, que contém a lista e atribuições de todas as organizações governamentais envolvidas na dissuasão nuclear.
Uma das mudanças mais importantes é que a Rússia reserva-se o direito de utilizar armas nucleares no caso de uma ameaça crítica à soberania ou integridade territorial do Estado. Anteriormente, esta condição era uma “ameaça à existência do Estado”.
O próprio documento contém por vezes uma formulação bastante vaga e algumas das suas disposições são encontradas em locais diferentes.
O texto do documento pode ter sido escrito de forma deliberadamente genérica e vaga – isto faz parte da política de dissuasão nuclear.
Como afirma o documento, “a incerteza para um potencial adversário sobre a dimensão, o momento e a localização da possível utilização de forças e meios de dissuasão nuclear” é um dos seus objectivos.
Duas disposições da doutrina mencionam Bielorrússia com a Rússia — agora a dissuasão nuclear estende-se ao país. Mas, como na versão anterior, muitas disposições mencionam “aliados” (não identificados) da Rússia.
Disposições gerais
A primeira diferença na nova doutrina diz respeito à cláusula em que “a Rússia considera as armas nucleares exclusivamente como um meio de dissuasão, cuja utilização é uma medida extrema e obrigatória”.
Agora a palavra “exclusivamente” desapareceu da frase, o que supostamente poderia significar que as armas nucleares estão adquirindo novas propriedades além da dissuasão. Esta alteração não é explicada no restante do documento.
A segunda mudança neste capítulo é a exclusão da restrição à natureza dos tratados internacionais do rol de atos jurídicos normativos em que se baseia a doutrina.
Se antes a doutrina se baseava, em particular, nos tratados internacionais da Rússia no domínio da defesa e do controlo de armas, agora baseia-se apenas em tratados internacionais.
Contra coligações e alianças
As maiores mudanças foram feitas no segundo capítulo, “A Essência da Dissuasão Nuclear”, no qual os autores da doutrina tentaram unir participantes de diferentes coligações e alianças sob a égide de uma responsabilidade colectiva comum.
A Rússia anunciou que considerará como alvo de dissuasão nuclear todos os membros de uma coligação, da qual um dos membros a tenha atacado, bem como um Estado que tenha fornecido território, mar ou céu para atacar a Rússia.
Outra nova disposição ameaça usar a dissuasão nuclear no caso de “agressão contra a Rússia por qualquer Estado não nuclear, mas com a participação ou apoio de um Estado nuclear”.
Esta disposição está provavelmente directamente relacionada com a recente decisão dos EUA de permitir que a Ucrânia usasse mísseis de longo alcance Americanos contra alvos em território russo.
Vladímir Putin falou pela primeira vez sobre a mudança da doutrina nuclear em Setembro, no meio de discussões dentro do governo dos EUA sobre a possibilidade de permitir que a Ucrânia utilizasse mísseis ATACMS contra alvos na Rússia.
Putin assinou a nova doutrina em Novembro, pouco depois de a Ucrânia ter recebido essa autorização.
Ameaças
Há também vários novos itens na lista de “ameaças que, dependendo das mudanças na situação político-militar e estratégica, podem transformar-se em ameaças militares”.
Num deles, a doutrina volta a mencionar “a criação de novas coligações militares ou a expansão das existentes (blocos, alianças), levando à proximidade da sua infra-estrutura militar com as fronteiras da Federação Russa”.
Em outros, “ações de um inimigo potencial destinadas a isolar parte do território da Federação Russa, incluindo o bloqueio do acesso a comunicações de transporte vitais”.
Existe uma região na Rússia que está completamente isolada do território do Estado – a região de Kaliningrado.
Além disso, a Crimeia anexada, que a Rússia considera o seu território, também está ligada ao território russo por uma ponte.
Duas outras ameaças listadas na doutrina são a derrota, destruição ou aniquilação de objectos ecologicamente perigosos da Federação Russa (o texto não diz, contudo, onde poderão estar localizados), bem como exercícios em grande escala perto das fronteiras da Rússia.
A lista de ameaças contém vários outros itens, alguns dos quais foram ligeiramente modificados.
Por exemplo, a lista de sistemas espaciais perigosos inclui armas anti-satélite, enquanto a “implantação” de sistemas de defesa antimísseis, mísseis de precisão de médio e curto alcance e várias armas estratégicas não nucleares foi substituída no texto por “presença e implantação.”
Mas algumas mudanças aparentemente pequenas expandem os conceitos de forma bastante significativa. Uma coisa é lançar mísseis, isto é, colocá-los em posição, e outra é construí-los e mantê-los armazenados.
Termos de uso
Um dos pontos mais importantes da doutrina são as condições sob as quais a Rússia pode usar armas nucleares. Estas disposições não significam que serão automaticamente utilizadas sob tais condições – ao publicá-las, a Rússia anuncia quando se reserva o direito a um ataque nuclear.
A principal disposição geral deste parágrafo na versão anterior afirmava que as armas nucleares poderiam ser utilizadas em resposta a um ataque nuclear contra a Rússia e os seus aliados ou a qualquer ataque que ameaçasse a existência do Estado.
Na nova doutrina, a “ameaça à existência do Estado” foi substituída por uma formulação menos clara: “ameaça crítica à soberania e (ou) integridade territorial”.
A lista de condições para o uso de armas nucleares contava com quatro cláusulas na edição anterior, e a nova versão acrescentou mais uma. Além disso, alguns foram alterados:
– Receber informações confiáveis sobre o lançamento de mísseis balísticos para atacar a Rússia e seus aliados. Este ponto permaneceu inalterado;
– Utilização de armas nucleares ou outros tipos de armas de destruição maciça contra territórios da Rússia ou dos seus aliados. As palavras “contra formações militares e (ou) instalações da Federação Russa localizadas fora do seu território” foram adicionadas a esta cláusula;
– Ataque a instalações críticas na Rússia que impediria a retaliação nuclear. Este ponto também não mudou;
– A cláusula “agressão contra a Rússia com o uso de armas convencionais quando a própria existência do Estado está ameaçada” foi alterada com a inclusão da Bielorrússia e a substituição de “ameaça à existência” por “ameaça crítica à soberania e (ou) integridade territorial”;
– O novo item, incluído na lista, é: “Recebimento de informações confiáveis sobre lançamento em massa (decolagem) de aeronaves estratégicas e táticas, mísseis de cruzeiro, aeronaves não tripuladas, hipersônicas e outras, e sua travessia da fronteira do Estado de Federação Russa”.
Quanto a doutrina mudou?
No final de setembro, soube-se que a Rússia mudaria a sua doutrina nuclear. Isto foi anunciado por Vladimir Putin.
Na altura, ele anunciou duas mudanças – uma resposta à agressão contra a Rússia por qualquer Estado não nuclear, mas com a participação ou apoio de um Estado nuclear, bem como uma condição para o uso de armas nucleares mediante recepção de “informações credíveis sobre um lançamento em massa de aeronaves ou drones.” Esses dois pontos aparecem na nova doutrina.
Em Setembro, Maxim Starchak, do Centro de Política Internacional e de Defesa da Queen’s University, no Canadá, disse à BBC que as novas disposições a que Putin se referia apenas clarificavam as condições para a utilização de armas nucleares, mas as razões para a sua utilização não mudaram.
“Embora anteriormente a condição para o uso de armas nucleares fosse um ataque por mísseis balísticos, isto foi agora expandido para todos os meios de ataque aéreo e espacial”, observou ele.
“Mas, na verdade, isto já era visto como uma ameaça capaz de ter um impacto negativo nas forças estratégicas de dissuasão, mesmo sob a doutrina atual”, acrescentou na altura o especialista.
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