Caçula, babá, moleque, dengo, cafuné. Algumas palavras que usamos no nosso quotidiano escondem vestígios e fonemas de uma herança africana que está profundamente ligada às mulheres e ao trabalho doméstico realizado por mulheres. mulheres negras escravizadas no Brasil dos séculos XVI a XIX.
Estima-se que cerca de 4 a 5 milhões de africanos foram traficados para o país durante o período. Destes, cerca de 75% eram bantos, um grupo que se espalhava por uma vasta área ao sul do Equador, no África.
A característica mais óbvia que une essas pessoas é justamente o fato de falarem línguas da família linguística bantu — da qual tomamos emprestadas algumas palavras que permanecem até hoje em nosso vocabulário.
A maioria dos que foram enviados à força para o Brasil veio de Angola e República Democrática do Congoe mais tarde, Moçambique.
No ambiente familiar colonial, esses escravizados aprenderam o português nas interações cotidianas com seus senhores — e também imprimiram na fala os hábitos e características de suas próprias línguas.
Ao mesmo tempo, os colonizadores portugueses apropriaram-se gradativamente de termos africanos, que passaram a ser utilizados principalmente para designar objetos e atividades do cotidiano.
Neste contexto, as mulheres africanas desempenharam um papel especial, seja através do cuidado das crianças, do trabalho na cozinha ou como amas e curandeiras.
‘Grande mãe ancestral dos brasileiros’
Autora de diversos livros e artigos sobre o tema, a etnolinguista baiana Yeda Pessoa de Castro vê no passado brasileiro um processo que invisibilizou na historiografia a força de trabalho das mulheres negras escravizadas.
Mas para a pesquisadora, que se dedica ao estudo das línguas africanas e sua influência no Brasil, essas mulheres tiveram um papel protagonista na família e no cotidiano do colonizador que ia muito além do serviço doméstico prestado.
Em seu livro Camões com DendêCastro descreve como as mulheres africanas influenciaram as famílias brasileiras contando histórias de seu fantástico universo afro-religioso, compartilhando seu conhecimento nativo sobre folhas e ervas medicinais, como cozinheiras introduzindo elementos de sua dieta nativa na alimentação diária da casa e como babás de jovens mulheres solteiras e cuidadoras de crianças.
No papel de “mãe negra e babá”, conta a linguista, essas mulheres amamentaram e criaram os filhos do colonizador “e, à maneira de uma pedagoga, ensinaram-nos a balbuciar as primeiras palavras, também na língua nativa, para os ritmo de seu canto. de calor” que os fazia dormir.
A própria palavra baba é uma das muitas marcas deixadas por este importante trabalho: os investigadores remontam as suas origens ao Kimbundu, uma das línguas bantu faladas em Angola.
Da mesma forma, diversas outras palavras ligadas ao cuidado e à maternidade também foram inseridas no contexto brasileiro por esse meio.
“No campo emocional, a mãe negra nos deixou o xodó, o cafuné, o cochilo, o dengo, e nos disse que ‘o mais novo é o dengo da família’, o irmão mais novo, sempre tratado com muito carinho por todos na a casa”, diz Yeda Pessoa de Castro.
Enquanto o dengo vem do quicongo, falado no norte de Angola e no baixo Congo, a caçula tem origem no quimbundo. No Brasil não existe outra palavra para se referir ao filho mais novo. Em português europeu chama-se benjamin, que para os falantes brasileiros, além do nome, é um adaptador multiplicador de tomada elétrica.
“Diante de tantas evidências destacadas pelo vocabulário, entre tantas outras ainda encobertas pela falta de pesquisas mais detalhadas neste campo, a mulher angolana, entre tantas outras mulheres negras de igual valor, é historicamente projetada como a figura emblemática da grande mãe ancestral dos brasileiros. Não é à toa que Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, é apresentada como uma santa negra!.”
Exemplos de expressões de origem Bantu
1. Babá
Tem origem na língua Kimbundu e vem do verbo ‘kubaba’, que significa ‘acalmar ou embalar uma criança para dormir’.
2. Cafuné
Tem origem no Kimbundu e vem da palavra ‘kafa’, que se refere à ação de bater, estalar com os dedos
3. Cochilo
É originário do Kimbundu e vem da palavra ‘kukoshila’.
4. Dengo
Tem origem em quicongo e, na língua original, significa pedido de conforto.
5. Mais novo
Vem de ‘kasule’, do Kimbundu, que significa ‘último filho’.
6. Moleque
Tem origem no Kimbundu e vem da forma ‘muleke’, associada a ‘menino’.
7. Palavrões
Origina-se do Kimbundu e da palavra ‘kukoshinga’.
8. Moringa
É originário do Kimbundu e vem da palavra ‘mudingi’.
9. Balde
É originário do Kimbundu e vem da palavra ‘kasambu’ que significa cesta.
10. Capenga
Origina-se do Kimbundu e da palavra ‘kiapenga’.
11. Óleo de palma
Do kimbundu ‘ndende’, o dendê, ou óleo de palma, é popular nas culinárias africana e brasileira.
12. Marimbondo
Do Kimbundu vem de ‘madimbindo’, palavra usada para vespa.
13. Lema
Tem origem em Kimbundu e ‘ku langa’, que significa enganar alguém.
14. Beleleu
Do Kimbundu vem de ‘mbelele’, palavra usada para se referir à morte.
15. Bunda
Do Kimbundu vem de ‘mbunda’, palavra usada para se referir a nádegas ou ânus.
Línguas bantu e português
Fundamental para a construção do Brasil e do movimento abolicionista, a cultura bantu reverbera até hoje não apenas no vocabulário do português brasileiro, mas também na entonação, na pronúncia e na sintaxe.
‘Bantu’ é a forma como o idioma é referido nas próprias línguas locais. No Brasil, porém, os linguistas tendem a falar em línguas bantu para se referir ao conjunto de línguas.
Margarida Petter, linguista e professora aposentada do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP), explica que o nome foi adotado pelos linguistas a partir da percepção de uma característica comum entre muitas línguas: a palavra ‘pessoa’ sempre tem o use da raiz ‘utu’, além do prefixo ‘ba’ para indicar o plural.
“Alguns africanos que foram transplantados para o Brasil já falavam um pouco de português devido ao contato com os colonizadores da região do entorno do Reino do Congo”, afirma.
Ao mesmo tempo, diz o especialista, ao aprender uma língua estrangeira, estas populações impunham algo da gramática, do som e do vocabulário das suas línguas nativas. “Eles trouxeram palavras e estruturas de suas línguas bantu para o português”, explica Petter.
Construções como “algumas lojas estão baixando o preço” ou “as ruas do centro não passam ônibus”, consideradas gramaticalmente incorretas na linguagem formal devido ao uso equivocado do assunto, são exemplos dessa influência na fala. linguagem, diz o linguista.
“Outra influência é a tendência na linguagem falada de dizer coisas como ‘a rapariga bonita’”, diz Margarida Petter. “Nas línguas bantu, o plural não é indicado com a letra ‘s’ no final das palavras, como no português, mas sim com o uso de um prefixo.”
“Para o falante da língua bantu, apenas colocar o primeiro elemento no plural seria suficiente para compreender o significado completo – colocar o ‘s’ no final do substantivo seria redundante.”
A influência bantu no Brasil também está presente nas religiões, na música e na dança. Os escravizados traficados para o país deixaram seu legado, por exemplo, na origem de ritmos e expressões musicais como o samba, o maracatu, a congada, o jongo e a capoeira.
Para Yeda Pessoa de Castro, a canção popular Escravos de Jó seria também mais uma marca dos bantos — e das mulheres que cantavam e ensinavam brincadeiras aos filhos dos colonizadores.
Segundo a investigadora, a palavra ‘jó’ poderá ter origem na língua Kimbundu e na palavra ‘njo’, que significa ‘casa’. ‘Caxangá’ era um jogo de tabuleiro, diz ele.
Segundo Castro, as denominações Candomblé, Macumba e Catimbó também são de origem bantu e provavelmente representam as mais antigas manifestações da religiosidade afro-brasileira nascidas na escravidão, como consequência do contato das orientações religiosas ameríndias e africanas com o catolicismo nos primeiros tempos do colonização. .
Na África colonizada por Portugal, os governos de países como Angola, Moçambique e Cabo Verde adotaram o português como língua oficial após a sua independência na década de 1970.
“Havia uma diversidade linguística muito grande, por isso optou-se pela adoção do português para evitar disputas tribais”, explica Alexandre António Timbane, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
As línguas locais, no entanto, continuaram a ser utilizadas em contextos informais e no seio das famílias.
“As pessoas começaram a aprender português para conseguir empregos e resolver questões burocráticas nos órgãos governamentais. Mas as línguas locais continuaram a ser faladas em contextos informais, nas famílias, nas canções e também na educação local”, afirma Timbane.
O investigador moçambicano lamenta, no entanto, que ainda exista preconceito fora de África em relação às variedades do português africano, especialmente na área do ensino.
“Minha variedade, meu sotaque, são influências da minha língua materna, da minha história”, afirma. “Devemos considerar e tolerar todas as variedades sem preconceito linguístico e incentivar estudos e pesquisas sobre elas, porque são úteis.”
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